"A luta", por Norman Mailer

sexta-feira, agosto 21, 2015 Sidney Puterman

Ali buma iê. O livro sobre a luta entre Muhammad Ali e George Foreman tem por subtítulo "a história da maior luta de boxe do século XX". OK. Isso, por si só, não seria determinante. Muitas lutas antes e depois desta foram chamadas de "a maior luta do século". Mas, repare: nenhuma delas, entretanto, mereceu um filme. Nenhuma delas foi também tema de um livro. Pois esta luta aí do cartaz mereceu ambos. E mais: ambos geniais. O filme é o excelente "Quando éramos reis", de Leon Gast, vencedor do Oscar de melhor documentário em 1996. Já o livro foi escrito por uma das lendas da literatura americana, Norman Mailer, e publicado em 1975, um ano depois da luta. Vi um e li o outro. Mais: guri, vi a luta ao vivo (ou era video-tape? a memória, às vezes, é traiçoeira) na TV, em preto-e-branco e com chuvisco. Eu não sabia, mas não era uma simples disputa de título. Era incomum. Em um canto do ringue, um lutador muçulmano que havia renegado seu nome branco de batismo (Cassius Clay). Um negro que se recusara a lutar na Guerra do Vietnam ("nenhum vietnamita nunca me chamou de 'nigger"). A Justiça americana tomou dele o título mundial dos pesos-pesados e o arremessou na prisão. Por três anos. Do outro lado havia um colosso demolidor, o invicto Foreman, então campeão mundial, que havia reduzido a pó os seus últimos 40 oponentes - entre eles Joe Frazier, que antes havia batido o próprio Ali. Havia também um consenso prévio: George Foreman iria trucidar Muhammad Ali. Não era um simples achismo: George até aquele momento se revelara imbatível. Os maiores da época ruíram aos seus pés. Já Muhammad, que, bailando, desbancara Sonny Liston 10 anos antes, estava velho. Ficara muito tempo parado. Mesmo nas suas vitórias recentes, não convencera. Por isso, seus fãs temiam pelo pior - uma surra vexaminosa. Esse temor, mesmo que não dito, era compartilhado pela própria equipe de Ali. Nela, apenas um dos integrantes se mostrava confiante: Muhammad. Sim, o próprio. Nos treinos abertos, comandava a multidão a torcer por ele contra Foreman, entoando o grito de guerra: "Oiê... Ali buma iê" ("Ali, mata ele"). O maior sedutor que o ringue já viu levou a África a acreditar que o negro, entre os dois lutadores, era ele, Muhammad. O oponente, Foreman, era o americano branco. Acredita nisso? Olhe o cartaz. Se você não os conhece, olhe bem o cartaz. Foreman era preto. Mais preto que Cassius Clay. Mas não foi essa a avaliação dos negros africanos. A multidão, hipnotizada, se deixou encantar por Ali. Ele era O negro. O canto tribal tomava conta das ruas de Kinshasa, capital do país. Ali buma iê. Era muito mais que uma luta: uma arena no coração do Zaire (país que não existia antes e passou a não existir depois), no centro da África, umbigo visceral do planeta. Eu, com treze anos, não entendia muito bem o contexto. Nem sabia que existia um tirano chamado Mobutu, que havia dado um golpe no tirano anterior, que mudara o nome do país de Congo para Zaire (o africano Mobutu achava que "zaire" era uma palavra africana, mas era... português arcaico!), e que a moeda havia se tornado zaire, e que tudo o mais era zaire ou mobutu. Eu era um moleque. Havia acabado de mudar de apartamento. Em 1o de outubro desse 1974 minha família se mudou do Ubatã para o Rodolfo Schaeffer. Na primeira noite na nova casa minha mãe trouxe o namorado para morar conosco. Não deu certo. Quando chegou a noite o casal se trancou e eu, revoltado, quebrei todos os copos da casa na porta do quarto. Tenso. Foi nessa casa também que eu continuei pulando na poltrona da sala pensando que era Sinbad, o Marujo. Foi nessa poltrona que eu escutei, no meu radinho de pilha "Artilheiro", presente da minha vó Lili, o Botafogo ser batido na primeira partida do triangular final do campeonato carioca de 1975. Vasco 2x1, com gol de Roberto Dinamite, sempre ele. Mas isso foi no ano seguinte, e o ano seguinte foi há muito tempo atrás. Já a luta, dentro do livro, é agora - e passa também todo dia no YouTube. Subverteram o tempo. Mas, às vésperas daquele combate, Muhammad Ali era, por antecipação, o perdedor. Todo o glorioso passado de Ali nada valia diante daquele que era o presente avassalador de George, o maior nocauteador de todos os tempos (ainda não haviam inventado o Mike Tyson). O clima era surreal. A luta havia sido adiada, por uma contusão de Foreman, o que prolongou a sensação fantasmagórica daqueles descendentes dos antigos africanos, com seus sangues e DNAs misturados, virem, reencarnados, trocar socos no continente negro. O livro de Norman Mailer conta essa estória. A descrição de Mailer é soturna e melancólica. Já a música de fundo é predominantemente mística. Os tambores da África tocam todo o tempo. Não é um livro comum. Mailer, o autor, é também personagem e trata a si mesmo na terceira pessoa - e com um estranho distanciamento, como se ele realmente não fosse quem ele era. Eu mesmo não sei quem era espectro ou gente viva naquela Kinshasa incorporada. O livro do autor que é personagem se esgueira, assiste embates emocionais periféricos nas semanas que antecedem a luta - entre repórteres, hotéis, sparrings - e dá a eles dimensão de main event. Vez por outra, tal e qual a abelha de Ali que repetinamente ferroa, ele se aproxima até o branco dos olhos. Mailer corre na quente madrugada africana ao lado de Ali. Um curto tiro de três quilômetros, após uma noite de bebedeira do escritor. Mailer desiste com menos de dois quilômetros. Mas ele estava bem perto. Foi o primeiro (e único) jornalista a entrar no vestiário de Muhammad após a luta. Voltou no avião em que todos pensavam estar o campeão. Não estava. A bem da verdade, o livro é tão sombrio que eu não sei quem estava no avião. Nem mesmo no vestiário. E é tão épico que a impressão que tenho é que Ali e Foreman estão trocando socos sobre o ringue desde 1974. Eu continuo com a respiração presa, na expectativa de quem vai vencer. E escuto a multidão de africanos famélicos, mantidos à distância por outros africanos bem alimentados e armados até os dentes, a cantar. Oiê. Ali buma iê.

Companhia das Letras, 225 páginas



Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

Um comentário:

  1. Amo filmes de lutador. ❤️ Descobri recentemente "Mãos de Pedra" e adorei a história. Move você e faz você refletir: um lutador pode ter um caminho complicado na vida e é interessante ver esse processo. Os filmes que contam as histórias sobre lutadores, deixam várias lições! :) Além de ter um bom desempenho, o elenco é excelente. Eu definitivamente quero vê-la novamente!

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