"Highlands", por Guilherme Cavallari

quarta-feira, fevereiro 28, 2018 Sidney Puterman

A Escócia mexe comigo. Não me pergunte por quê. A única resposta que posso dar é idiota: uma história em quadrinhos que li quando tinha 7 anos, sobre Rob Roy. Talvez eu morasse na Bahia, nessa época, e estivesse apaixonado simultaneamente pelos acarajés, o que torna tudo ainda menos provável. Rob Roy saltava de kilt entre os penhascos e se agarrava no galho retorcido de uma árvore para não despencar pedreira abaixo. Hoje sei que há poucas árvores nas Highlands, principalmente na beira de penhascos. Mas fato é que a Escócia e as Highlands nunca me saíram do pensamento. Há alguns anos fui para lá. Só reforçou o feitiço. Continuo achando aquele monte de pedregulho o lugar mais bonito do mundo, ignorando ter nascido no Posto Seis de Copacabana, crescido na praia de Ipanema e vivido cercado pelas matas de Petrópolis. Mas para mim essas belezuras não são páreo para a Ilha de Skye. Por isso, quando meu filho Durval me deu o livro do aventureiro Guilherme Cavallari, já pela capa eu vi que não tinha como não gostar. Não deu outra. É um relato saboroso de um sujeito que resolveu cortar as Highlands pelo ombro esquerdo, pela parte noroeste da ilha, e foi, passo a passo, de Fort William a Cape Wrath, lá onde a Escócia acaba. São quatrocentos e vinte quilômetros de morro, pedra, chuva, vento e capim molhado. De dar água na boca - pelo menos, em tese. Eu, na prática, não conseguiria chegar nem próximo desta proeza, uma raspinha que fosse, sequer uma meia-dúzia de corbetts, ou mesmo uns três munros (não sabe o que é, né? já lhe conto). Sou um cara animado, mas sou só um turista apaixonado, e turistas são uma outra natureza de gente, bem diferente do casca-grossa aventureiro - como define o autor sem piedade, quando, já quase no fim da missão, em meio à neblina espessa, resolveu usar o GPS como instrumento de navegação, e mergulhou numa crise de consciência ("Eu estava roubando. Seguir um trajeto digital era o mesmo que contratar um guia - e aventureiros de verdade não contratam guias. Essa era a diferença entre um turista e um aventureiro.") Bem, como já disse, eu sou turista e contratei um guia. Dos bons, por sinal. Mas ler o texto deliciosamente highlander deste trilheiro profissional não quer dizer acompanhar o relato monocórdio de sobe morro, desce morro, corta lago, cruza rio, arma barraca e olha mapa - embora tenha uma boa centena de páginas dessa trosoba aí. A outra centena delas é História. E livros, muitos livros. Um dos personagens principais do seu roteiro literário pelas Highlands é John Muir, um escocês de meados do século XIX, que o autor inicialmente descreve como um "filósofo da natureza", mas que, à medida que o livro encorpa e o personagem retorna, a gente percebe se tratar de um gigante. Um idealista obstinado que dedicou a vida a explorar e proteger o ambiente. De jovem estudioso que emigrou para a América a naturalista que criou o parque de Yosemite, na Califórnia, Muir teve uma carreira surpreendente, incluindo criar um despertador-catapulta, com uma engrenagem que lançava longe da cama o dorminhoco, quando dava a hora (apesar de engenhosa, a geringonça teve pouco mercado e não foi adiante). E não é só Muir, o precursor do preservacionismo, que peregrina pelas prateleiras de Cavallari. Há muitos outros sujeitos caminhando por ela, embora nem eu, nem provavelmente nenhum dos meus três leitores tenha jamais ouvido falar deles. Hamish Brown, por exemplo - cujo Hamish's Mountain Walk se tornou a biblía do montanhismo escocês, com o relato da sua travessia pedalando 2.600 quilômetros pelas Highlands (durante 112 dias consecutivos, subindo 289 picos, que totalizaram 136.000 metros verticais) -, popularizou a atividade. Mas o que eu mais gostei nele foi o fato de que o radical fazia seus trechos mais insossos de trekking lendo, com um livro nas mãos. Uau! Imagina a cena. Esse é dos meus. Mas Cavallari traz outros autores highlanders, nativos ou por adoção. Seton Gordon. Tom Weir. Paul Theroux. Plinio, O Velho. Hugh Thomas Munro. Este aqui publicou há 125 anos as Munro's Tables, com a listagem de todos os picos escoceses acima de 3.000 pés de altitude. Na época, se pensava que eram no máximo trinta. Munro achou 282. O sujeito virou esporte, o munroísmo. De lá para cá o que não falta é montanhista que coleciona munros (Viu? expliquei. Já Corbett foi um sujeito que classificou morros menores, e acabou substantivo também). Vale muito é que o percurso solitário de Cavallari, quando impresso, vira aula de história, e das divertidas. Aprendi muito sobre o país e sobre as highlands, e revi muita coisa sobre a formação do Reino Unido que já tinha lido em, por exemplo, "Uma história dos povos de língua inglesa", de Winston Churchill (veja aqui mesmo no blog, em http://bit.ly/2sZpwxd). Boa parte delas eu já não lembrava mais, com todas as suas guerras por um trono ou católico ou protestante, com reis holandeses ou alemães que a pinimba atávica com a religião fazia mais legítimos para a nobreza do que um inglês nato. Esta lógica caduca levou ao Levante Jacobita, no miolo do século 18, quando os escoceses resolveram tomar a coroa britânica. Não deu nada certo, hoje a gente já sabe, mas na época foi um baita tumulto. Os scots, apesar de terem feito uma visagem na fronteira inglesa, com um exército maltrapilho invadindo algumas cidades mais desprotegidas, sequer conquistaram o Castelo de Edimburgo. O confronto só serviu para tornar a Escócia menos escocesa. A propósito, descobri pela narrativa de Cavallari o quão impiedosas eram as leis escocesas de então, quando os mandachuvas de cada vale podiam enforcar e afogar seus súditos a seu bel prazer, confiscar animais e até mesmo gente (o dono das terras podia se apropriar de uma criança gêmea no nascimento, ou seja, um rachuncho absurdo tipo tu-fica-com-um-e-me-dá-o-outro). Após o levante, a elite poupada (por bom motivo não foi) fez nas suas terras o que a nossa elite faz na nossa: trocou gente por bicho. Os colonos pobres foram expulsos pelos latifundiários, em prol de mais espaço para as valorizadas ovelhas pastarem. O povo desterrado se tornou imigrante miserável, enquanto a lã e a carne de carneiro enriqueciam ainda mais os landlords. Triste história da civilização humana. Mas nem todo passado é feito de desgraça: o autor deixa as trilhas de lado para nos contar também das épocas remotas do lugar. Volta no tempo para falar da Falha Geológica das Highlands, demonstrando como a região era uma enorme "balsa de pedra", que há 650 milhões de anos vagava pelo planeta, à deriva, zanzando do Polo Norte ao Polo Sul, afundando por milênios e emergindo para enfim encaixar na Inglaterra. O sertão lá é tão antigo que há formações rochosas - o gnaisse - com 3 bilhões de anos, quase a idade da Terra. Na verdade, um edimburguês contemporâneo dos jacobitas revoltosos, James Hutton, foi quem desmentiu um xará seu, o bispo irlandês James Ussher, que havia petulantemente cravado que o mundo tinha sido criado no dia 23 de outubro, no ano 4.004 antes de Cristo. Tal precisão decorria de contas obviamente malucas baseadas no Gênesis - e contestadas por Hutton, cujos estudos definiram um tempo geológico de bilhões de anos para o planeta. Hoje Hutton é considerado o pai da geologia. Cavallari tempera sua (nossa) viagem com isso e muito mais. Personagens reais que se tornaram lenda, como a Maggie Meio-Enforcada e o Sandy Ermitão - a primeira uma adúltera que matou o filho recém-nascido e que por isso foi enforcada, mas reviveu a caminho da cova (pelas leis da época, ela não poderia ser executada duas vezes pelo mesmo crime e a partir daí ficou livrinha da silva); o segundo, um soldado escocês que perdeu a mulher alemã e os filhos carbonizados e depois se isolou, trinta anos recluso nas Highlands, aparecendo somente para beber e roubar - talvez na ordem inversa. Todo este mundo cão pertence ao passado. As terras cuja posse gerou tantas mortes hoje são exemplo de bom-senso e liberdade. O Land Reform Act, a Reforma Agrária Escocesa, de 2003, determina que qualquer um que queira desfrutar da natureza para recreação pode entrar em qualquer propriedade, desde que com respeito, cuidado e responsabilidade. Uau. Que belo modelo para as minhas utopias. Com todos estes nutrientes na mochila, a travessia inóspita de Guilherme Cavallari é um adorável passeio para o leitor, este boa vida. Enquanto ele sofre de cansaço e fome, com as botas encharcadas, recosto na poltrona e saboreio os lugares pelos quais ele passou. Atravesso os vales, desço os paredões de rocha, acampo selvagem ou no (questionável) conforto de um bothy - casas no meio do nada, abertas ao público e preparadas com o básico para receber aventureiros, outro brinde que a Escócia oferece. Aprendo com Walter Scott, Daniel Defoe, Paul Bowles, Robert Louis Stevenson e muitos outros, um baita time de escritores que é mencionado, referido, explicado e que ganha incontáveis aspas nas páginas da obra. Até mesmo a cinemacoteca é abastecida, com filmes que vão do cultuado Trainspotting a O Céu que nos protege, incluindo citações papo-cabeça, como quando alguém - de novo pegando no pé de nós, turistas, simples mortais - explica a diferença entre turistas e viajantes: "Um turista é alguém que pensa em voltar para casa no momento em que começa a viagem, enquanto o viajante pode não voltar jamais." Ops, reforço minha humilde categoria, sou turista convicto, mas aqui me senti viajante. Ou quase um local. Por falar em local, Cavallari ensina ainda que o nome em gaélico do celebrado malte escocês é Uisgue beatha ("água da vida"), o que mostra que o nosso aportuguesamento para uísque deixa o nome mais próximo do original do que o termo whisky britânico. Tudo isso já estaria muitas milhas além do exigido para eu gostar do livro. Mas quando deparo com os feitos e artimanhas de Raibert Ruadh MacGriogair, o lendário Rob Roy McGregor, com encorpados parágrafos sobre um dos heróis da minha infância, aí já é tripudiar. Espremi o livro até o bagaço, feliz. Não dava para ser melhor - pelo menos, não sem estar lá. As Highlands do Guilherme escritor e aventureiro é um minucioso descritivo de como cumprir a trilha Fort William-Cape Wrath, para qualquer trilheiro que se preze. Traz as referências dos bothies, dos passos entre as montanhas, das vilas, dos vales, das rodovias, das alturas e das distâncias. Para os sedentos por saber, ele vai na essência, ao penetrar na história da terra e do povo. Mas qualquer tipo de leitor vai logo perceber, com o livro nas mãos, que ele é uma deslavada declaração de amor. À natureza, à história, aos livros, à Escócia. Mais ainda a algumas pessoas especiais para o autor, as quais, no seu pensamento, fizeram parte, de cabo a rabo, ou de forte a cabo, desta trilha nas terras altas escocesas. Não é pouco. Qualquer um de nós gostaria de se despedir das pessoas que amou eternizando-as nas páginas de um livro. Tornando-as para sempre parte da nossa própria história. Guilherme fez isso. Além dos 446 quilômetros que andou, dos 16.000 metros que subiu, ele nos conta quem foram Martha e Rodrigo. Se revela em reflexões de irmão, cunhado e aventureiro. Desglamuriza sua façanha. O sujeito calado, mas que fala o tempo todo no nosso ouvido, no fim do livro parece mais um parceiro de treino. Compartilha os pequenos e grandes obstáculos do trajeto e nos provoca, frente a cada um dos desafios da montanha e da solidão. Então eu de novo me imagino sentado num cume soberano daqueles, fitando a imensidão deserta e silenciosa. Já fui duas vezes às Highlands. Depois do livro de Cavallari, é ruim de não ir a terceira.

Kalapalo Editora, 224 páginas



P.S.: Algumas coincidências são deliciosas. Olhe como a foto à esquerda e a capa do livro, à direita, são parecidas: a sombra, a vegetação, o vale, a trilha/charco serpenteando, a profundidade, o céu azul por trás dos morros... mas o surpreendente é que uma ignorava a outra! A da esquerda é uma foto que tirei enquanto turistava a esmo pelas montanhas das Highlands, em 2014. A da direita é a capa do livro, lançado em 2017. Doce coincidência.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: