"Exodus", por Leon Uris


"Exodus" é um híbrido de livro de história e romance. Ora pende mais para um, ora para outro. O início, ficção pura, é bem característico dos best-sellers que dominaram o mercado editorial norte-americano dos anos 50 aos anos 70. Diálogos curtos e personagens cínicos.

Sob este aspecto, o livro é bom. Ainda que, à medida em que o enredo se desdobra, os componentes fictícios acabem sendo escanteados pela densa abordagem histórica.

E aí, quando o assunto é História, não espere isonomia salomônica. A abordagem do autor se dá sob o ponto-de-vista dos hebreus. Mas isso não condena a obra. Como repito sempre, não há autor imparcial. Todo mundo tem lado. Porém, se o conteúdo é honesto e valioso, tá valendo.

Aqui vale. "Exodus" se tornou um marco para o entendimento de um conflito até hoje em curso.

O título do livro remete ao nome de um dos navios que zanzavam abarrotados de sobreviventes judeus, pelo Mediterrâneo, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Os passageiros eram refugiados europeus. Sem terra ou pátria, cada indivíduo embarcado era o último componente de uma família chacinada. Eram remanescentes do Holocausto, à deriva e sem destino legal.

Em 1947, o fim de cada uma destas embarcações era incerto e se resumia a quatro opções:

Na tentativa de furar o bloqueio inglês, os navios zarpavam da França e eram 1) abordados nas proximidades do porto, e dali obrigados a retornar e despejar os judeus de volta em terra firme, donde eram reconduzidos para campos de refugiados na Alemanha; 2) abordados já em alto mar, daí escoltados até o Chipre, onde os passageiros eram trancafiados em campos de refugiados na ilha; 3) bem-sucedidos em desembarcar sua carga humana em algum porto da Palestina, e aí era um salve-se quem puder, com os judeus perseguidos pela polícia inglesa; 4) afundados à sangue-frio pela Marinha Real Britânica.

Os passageiros do Exodus eram fugitivos de um campo de refugiados cipriota. Seu capitão tinha por missão desová-los clandestinamente na cidade de Haifa, na Palestina. A viagem foi pra lá de romanceada e ajudou a catapultar as vendas da obra, que virou quase uma franquia: o longa-metragem "Exodus", estrelado por Paul Newman, arrastou multidões aos cinemas.

(Em 2007 foi publicado "Exodus 1947", por Ruth Graber, um sólido trabalho de reportagem investigativa, em que os passageiros do emblemático navio foram entrevistados e seus destinos - bem como sua origem - foram revelados.)

Já o roteiro de Leon Uris, após utilizar os capítulos iniciais para criar uma atmosfera de thriller de ação, logo revela seu principal objetivo, que é uma longa linha do tempo. Uris narra a vida das comunidades judias nas franjas do Império russo, vítimas frequentes de animados pogroms. Com o surgimento do sionismo, a perseguição estimula a imigração dos idealistas para a Palestina, no fim do século XIX.

O escritor faz deste recorte a gênese da trama. Se valendo da epopeia ficcional de dois irmãos, Barak e Akiva (nés Jossi e Yakov), que vão cinematograficamente a pé da Rússia ao Oriente Médio, o autor detalha as costuras e pressões políticas de um mundo com interesses excludentes, no início da Guerra Fria.

Abre uma janela interessante sobre as relações sociais árabes na Palestina da época, e de como a chegada dos judeus desestabilizou a exploração que os efêndis tradicionalmente faziam dos felás - o povo primitivo e ignorante que habitava os pântanos da região.

Se valendo das aldeias que proporcionavam interação comunitária, o autor pontua ao longo de todo o livro o contraste entre o que apresenta como ímpeto modernizador e criativo do colono europeu (os judeus) e a passividade característica do nativo local (os felás).

Também expõe o choque de culturas, contrapondo a igualdade de homens e mulheres entre os judeus (onde as mulheres protagonizavam até ações militares) à submissão das mulheres árabes - nas costas de quem caía o serviço pesado das aldeias, na função de semi-escravas dos maridos.

Após um período de relativa tolerância entre árabes e judeus, no início do século XX, onde havia uma rivalidade latente, amenizada pelos ganhos pecuniários que a presença judaica trazia para a terra e o povo local, o mandato inglês da Palestina se torna o catalisador do livro, incendiando a história.

Antagonistas cuja existência histórica acabou diluída na sequência interminável de conflitos que caracteriza a região, os ingleses - que ocupavam a Palestina com seu exército - são expostos como o maior inimigo do êxodo judaico. Após um curto período em que toleram e contribuem para o estabelecimento dos judeus, os britânicos, por uma mescla de interesses econômicos e políticos, passam a impedir a chegada dos judeus, ao mesmo tempo em que municiam e protegem os árabes. 

Este enfrentamento não só abre o livro, como citei - com os judeus sobreviventes da Solução Final confinados em um campo de refugiados no Chipre, sob vigilância inglesa -, como vai tomar boa parte da narrativa. São os judeus em guerra declarada contra os ingleses, em enorme desvantagem militar e numérica, e tendo que simultaneamente neutralizar as dezenas de grupelhos árabes que executavam ataques de emboscada.

Todo o universo geopolítico e diplomático que marcou o período é esmiuçado na obra. O avanço cronológico das tratativas internacionais em busca de uma solução que contemplasse todas as partes interessadas é descrito em detalhes.

A baixa perspectiva de sucesso e a reviravolta política que resultaram na imprevista aprovação da ONU à criação do Estado de Israel é apresentada voto a voto. Para quem desconhece as filigranas da História - eu e a imensa maioria da torcida botafoguense -, a reprodução da Assembleia é uma oportunidade ímpar para aprender como as coisas se deram, em um passado nem tão remoto assim.

Ao fim, Uris retoma os personagens que lhe ajudaram a contar sua história. Ainda que celebrando a vitória parcial por terem construído um lugar para os judeus, as mortes no confronto constante com os árabes, em um contexto onde por algum tempo pareceu possível a coexistência em harmonia, impedem um final feliz.

Compreensível. Publicado há 65 anos, boa parte do texto parece ter sido extraído do jornal de hoje.

Editora Record, 713 páginas  |  10a edição, 2023  |  Copyright 1958 | Tradução Vera Pedroso


"Filho do Hamas", por Mosab Hassan Yousef




Nunca tinha ouvido falar desse cara. Mosab Yousef. Mas o fato é que a guerra entre Israel e o Hamas abriu espaço para nomes desconhecidos que tivessem qualquer coisa a ver com o conflito. Mosab foi apresentado na mídia com o apelativo título de "o filho do fundador do Hamas". As chamadas para uma entrevista no horário nobre, na emissora de maior audiência, me chamaram a atenção.

Sou cético por natureza. Vejo desconfiando do que vejo. Leio desconfiando do que leio. Para me sentir à vontade com o tema, preciso destrinchá-lo. Descobrir se há algo por trás. Boa parte das vezes o conteúdo já trai a (má) intenção de quem fala ou escreve. Mistificações, interesses pessoais, tentativas de manipulação - tudo isso salta aos olhos, quando lemos nas entrelinhas.

Às vezes não dá para "ver" e temos que recorrer a uma boa pesquisada, um aprofundamento maior para decifrarmos com segurança se o que estamos vendo/ lendo merece credibilidade. Assim, com tudo isso em mente, fui assistir a entrevista do tal "filho do Hamas". Com os dois pés atrás. 

Ainda mais porque ele era apresentado como um "traidor" do Hamas, que teria trabalhado como agente secreto para Israel. Parto do princípio óbvio que nenhum traidor é confiável - é o primeiro raciocínio de qualquer um, e eu não sou diferente. Mesmo assim, fui ver a tal matéria com o Mosab.

Com cinco minutos de entrevista, eu estava surpreso. Articulado, direto, despojado, Mosab Yousef não parecia se encaixar em nenhum estereótipo. O que ele dizia era convincente. E humano: era contra a guerra e contra o terrorismo. Se declarou a favor de dois Estados - um palestino e um judeu.

Yousef fazia sentido.

Na entrevista, ele comentou sobre um livro que escrevera dez anos atrás. Ansioso por entender melhor quem era aquele sujeito, se era confiável ou não, se era uma farsa, uma peça de propaganda de Israel ou um pacifista legítimo, ele me deu de bandeja como eu iria descobrir.

Lendo o livro.

Antes de mais nada, temos que aceitar que a mídia, e principalmente agora as redes sociais, trabalham com estereótipos. São mais fáceis de processar e digerir. É a dicotomia mocinho-bandido. Assim, sob a lente dessa dualidade simplificadora, "entendemos" logo do que se trata. Voltando à ideia anterior, se Mosab é palestino e espiona para os israelenses, ele é traíra. O sujeito mau.

Pior ainda. O cara traiu o pai. O pensamento agitado já deduz: "É a ovelha negra da família."

Pois nada mais longe da verdade. O livro é, acima de tudo, uma ode de amor e de reverência ao pai. Parece contraditório, não é? Pois é. As pessoas de carne e osso têm muitas nuances. Assim o leitor vai desvelando as particularidades da personalidade de Mosab à medida em que avança no livro. Mas aqui precisamos estabelecer um ponto.

O Mosab Yousef, o "Filho do Hamas", apareceu na (nossa) mídia agora, em outubro de 2023, por conta do ataque terrorista do Hamas. Isso dá às suas palavras e ao seu livro um cunho oportunista. A questão, porém, é que o livro foi escrito e lançado em 2010. Há treze anos atrás. 

Sem oportunismo ou sensacionalismo. A gente só nunca tinha ouvido falar no cara, nem no livro.

O Mosab que essa pequena bio, publicada em 2010, descreve era um garoto palestino de boa índole, racional e reflexivo. Adorava - e ainda adora, como eu disse acima - o pai, Hassan Yousef (a propósito, pelo seu relato, todos adoravam Hassan: generoso, tranquilo e devotado ao Islã).

"Meu nome é Mosab Hassan Yousef. Sou o filho mais velho do xeique Hasan Yousef, um dos sete fundadores do Hamas. Nasci na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, e faço parte de uma das famílias islâmicas mais religiosas do Oriente Médio".

Assim Mosab abre o primeiro capítulo. Após algumas digressões históricas, ele nos conta como o pai vivia para a religião e para a família. Mosab queria ser como o pai.

O pai fundou o Hamas como uma instituição religiosa e filantrópica, em uma Palestina que era um barril de pólvora. Aos poucos, o Hamas ganhou o respeito da população e passou a ter relevância política. Se tornou uma alternativa confiável à OLP e à ANP, ambas tidas por corruptas.

Quando um braço do Hamas começou a combater Israel com violência, Hassan, pai de Mosab, não participou. Mas nunca condenou ou procurou restringir as ações violentas. Apesar de "pacífico", era bastante visado por Israel. Assim, por ser notoriamente um fundador do Hamas, Hassan passou boa parte da sua vida em prisões israelenses. Nunca reclamou, porém, ou sequer reportou à família o que suportava na prisão.

Mosab conta que, como filho mais velho de uma família em que o pai passava a maior parte do tempo preso, se tornou uma espécie de pai postiço para os seus irmãos. E também arrimo de família. A despeito da projeção que o pai possuía, e dos muitos tios de Mosab politicamente bem situados, a cada vez que o pai ia preso, ele, a mãe e os irmãos eram acintosamente abandonados.

Quando o pai retornava para casa, refluíam todos. As mesmas reverências, o mesmo respeito. Assim que os israelenses prendiam novamente seu pai, todos sumiam. Não havia dinheiro. Sentiam fome. Mosab passou a vender nas ruas os doces que a mãe preparava. Os tios o proibiram quando souberam. Era humilhante, disseram. Mas não lhe davam os meios para subsistir na ausência do pai.

Mosab era guri na época da Primeira Intifada. Garotos palestinos ganharam as manchetes do mundo tacando pedras em tanques israelenses. Davi contra Golias. Mosab era um deles. Odiava os judeus.

Jogar pedras em judeus, entretanto, era pouco para Mosab. Ele queria sangue. Vingança histórica. Queria matar os judeus. Para isso, precisava de meios. Adolescente, não tinha espaço na organização, mesmo sendo filho do xeique. O próprio pai queria que ele se concentrasse apenas nos estudos. Mas ele queria participar também da guerra contra Israel.

Conseguiu de um primo um contato com um vendedor de armas de segunda mão. Com o dinheiro que economizara, comprou uma pistola e uma metralhadora. Agora sim ia exterminar os judeus. Nos preparativos para o atentado com o qual sonhava, testou as armas. A metralhadora não funcionava. Antes que pudesse exigir o dinheiro de volta, foi capturado pelo serviço secreto de Israel numa blitz.

Foi espancado, torturado e mantido por semanas em uma solitária infecta.

Como era praxe do serviço secreto, após o período de tortura, os presos palestinos, de acordo com sua utilidade potencial, passavam por uma tentativa de cooptação. Os israelenses queriam espiões. Mosab ignorou a oferta.

Foi cumprir sua pena em uma prisão coletiva. Lá, como aqui, os presos são distribuídos pela sua facção. A de Mosab era o Hamas, a maior e mais poderosa (outras eram o Fatah, a Jihad Islâmica e a FDLP/FPLP). Na prisão foi que conheceu de fato como era a organização. O Hamas. Não aquele em que seu pai era um líder da face religiosa do grupo. O Hamas que detinha poder político e militar.

Não era o que ele esperava.

O que Mosab encontrou na prisão foi um sistema despótico, arbitrário e violento. Administrado pelo Hamas, que aterrorizava a todos os detentos. Mas não a ele.

"Por ser filho do xeique Hassan, eu estava acostumado a ser reconhecido em todos os lugares aonde ia", esclarece. "Se ele era o rei, eu era o príncipe, o herdeiro legítimo, e era tratado como tal".

O irmão do seu pai, Ibrahim Abu Salem, estava na mesma prisão, sob detenção administrativa. Era um dos maiorais da cadeia e tinha autorização para circular por todo o campo. Mosab e o tio tinham uma relação apenas cerimoniosa; mas, ainda assim, só isso já reforçava a segurança do "príncipe".

Mesmo estando "imune" à agressão física e psicológica dos maj'd (os xerifes do Hamas na cadeia), Mosab achava o sistema injustificável. Todos os detentos tinham que se comportar rigorosamente dentro dos preceitos do grupo. Quem falhasse em qualquer um dos rituais diários prescritos (despertasse atrasado, ou cochilasse durante uma oração, demorasse um pouco mais no banheiro etc) "ganhava um ponto vermelho". 

Quando um sujeito acumulasse um determinado número de pontos vermelhos, os maj'd mandavam todos os detentos saírem da tenda, traziam o "infrator", aumentavam o som da tv (para abafar os gritos) e davam início ao corretivo. Se havia suspeita de que o punido "falava muito", e tivesse passado alguma informação aos israelenses, a tortura era semanal.

Um dos presos explicou à Mosab os castigos mais comuns. "Eles costumam por agulhas sob suas unhas e derreter bandejas de plástico sobre sua pele", revelou. "Às vezes, colocam um grande bastão atrás dos seus joelhos e o fazem ficar agachado por horas e não o deixam dormir".

Para o Hamas, todos os detentos eram suspeitos, e por isso eram todos continuamente vigiados. E, mesmo sendo o "príncipe", o autor confessa que "tinha medo de cometer um erro, de me atrasar, de continuar a dormir depois da ordem de despertar ou de cochilar durante a jalsa".

Mosab esclarece que "se alguém era 'condenado' pelos maj'd por ser colaborador, sua vida acabava, a vida de sua família era destruída, e seus filhos, sua mulher, todos o abandonavam". Muitas vezes o condenado era inocente, mas só o fato de ter sido acusado era a exclusão absoluta. "Ser tachado de colaborador era a pior reputação que alguém podia ter", diz o palestino. 

Muitas vezes a punição ia além da tortura e da exclusão. De acordo com o autor, de 1993 a 1996 o Hamas assassinou, dentro das prisões israelenses, 16 suspeitos de colaboração.

A vergonha imposta aos que eram poupados da execução fazia deles párias dentro da sociedade palestina. Eram obrigados a assinar confissões admitindo perversões sexuais. Por conta da boa caligrafia, Mosab as escrevia, para que os detentos as assinassem. 

"Eu passava meus dias copiando dossiês sobre prisioneiros", explica Mosab. "Os relatórios se assemelhavam ao pior tipo de pornografia. Homens que confessaram ter feito sexo com a própria mãe. Um detento que declarou ter feito sexo com uma vaca. Outro, com a filha. Um outro, com a vizinha, tendo filmado tudo e dado as imagens aos israelenses".

A obsessão pelo sexo revela muito mais sobre os carrascos que ditavam as confissões do que sobre os pobre coitados que as assinavam. Revela, sobretudo, a cultura primitiva da região.

"Para mim, aquilo parecia loucura", escreveu. "Enquanto continuava a copiar os arquivos, percebi que, sob tortura, os suspeitos eram questionados sobre assuntos que não tinham como conhecer, mas que, mesmo assim, davam as respostas que achavam que os torturadores queriam ouvir".

Mosab reencontrou na cadeia Akel Sorour, um antigo amigo de infância. Se o passado os unia, no presente, porém, Akel estava em situação oposta à de Mosab - era órfão e sua família se resumia a uma irmã. "Isso o tornava muito vulnerável, porque não havia ninguém para vingar sua tortura", esclarece Mosab. Embora fosse membro de uma célula do Hamas e já tivesse sido preso várias vezes, ele era rejeitado pelos prisioneiros urbanos da organização.

"Por ser um simples camponês, seu modo de falar e comer parecia engraçado para os outros que se aproveitavam dele", relata. "Akel tentava de todas as maneiras ganhar a confiança e o respeito dos prisioneiros, cozinhando e limpando para eles, mas era tratado como lixo, pois os outros sabiam que ele os servia porque tinha medo".

Uma vez por mês, as famílias podiam visitar os prisioneiros e levar comida para eles. Akel ganhou duas sacolas da irmã. Ao voltar para a seção, porém, foi levado pelos maj'd para interrogatório. A comida foi extorquida dele e servida para o tio Ibrahim e para outros maj'd. Akel já tinha trabalhado para o tio, pensou Mosab, e até mesmo preparado a comida dele. Não entendia porque Ibrahim não tinha impedido a arbitrariedade.

"Olhei para meu tio e me perguntei por que ele não os deteve. Estivera na prisão com Akel várias vezes, os dois haviam sofrido juntos", questionou. "Será que permitiria a tortura por ele ser um camponês pobre e calado de um vilarejo e meu tio ser da cidade?"

Mosab registrou que "Ibrahim Abu Salem ficou sentado com os maj'd, rindo e comendo os alimentos que a irmã de Akel levara". Enquanto isso, "outros integrantes do Hamas enfiavam agulhas sob as unhas do rapaz".

"Mais tarde, me entregaram seu dossiê para copiar", descreve. "Segundo o relatório, ele confessara ter feito sexo com todas as mulheres da aldeia e também com burros e outros animais. Eu sabia que tudo aquilo era mentira, mas copiei o arquivo e os maj'd o enviaram para o seu vilarejo. A irmã o deserdou e os vizinhos se afastaram".

Akel, que já ficara irreconhecível após a tortura, definhou. Passou a evitar Mosab.

O filho de Hassan julgava os mad'j piores que qualquer colaborador. Estava confuso.

Toda a religiosidade que herdara do seu pai parecia disassociada do Hamas real. A proposta que ouvira do Shin Bet - o serviço secreto de Israel - passou a ser intimamente avaliada. O que os israelenses lhe propuseram foi que contribuísse, sob a alegação de que isso ajudaria a evitar a morte de inocentes palestinos e judeus. 

Ainda que a possibilidade de salvar vidas lhe fosse atraente, Mosab não fazia ideia de como poderia colaborar. Era um garoto, sem acesso a nenhuma informação. Mas a ideia começou a girar na sua cabeça, aumentando a sua confusão.

Lendo a biografia, me pareceu que o abalo das convicções religiosas de Mosab são o cerne da sua história. Nós, distantes deste conflito singular e das culturas que o envolvem, temos escassas ferramentas para aferir com precisão o que pensam os locais. Nossa realidade carece de pontos de contato com a realidade deles. Nossa relação com a religião é outra. 

Seja como for, fundamental para que possamos bem avaliar a situação é conhecer o relacionamento e o sentimento entre pai e filho - o fundador do Hamas e o alardeado "filho do Hamas". Para tanto, vou transcrever alguns trechos em que ele se refere ao pai.

"Meu pai nunca me ensinou a odiar, mas eu não sabia como evitar esse sentimento. Embora ele protestasse calorosamente contra a ocupação - e acredito que ele não hesitaria em ordenar um ataque nuclear à nação de Israel se dispusesse das bombas -, nunca disse nada contra o povo judeu, ao contrário de alguns líderes racistas do Hamas", conta Mosab. "Meu pai estava muito mais interessado no Deus do Alcorão do que na política".

"Meu pai era o Islã para mim. Se eu tivesse de colocá-lo na balança de Alá, ele pesaria mais que qualquer outro muçulmano que conheço". Ressalta que ele "nunca perdeu a hora de uma prece e, mesmo quando chegava tarde e cansado, eu o ouvia orando e fazendo súplicas ao deus do Alcorão no meio da noite. Ele era humilde, amoroso e clemente com a esposa, os filhos e até mesmo com desconhecidos". 

O comentário seguinte é quase uma chave para a interpretação do conceito de religião por parte de Mosab. "Mais do que um defensor apaixonado do islamismo, meu pai vivia como um exemplo do que deveria ser um muçulmano. Ele refletia o lado bonito do Islã, não o lado cruel que exigia que seus seguidores conquistassem e escravizassem o mundo".

(Hoje, mais de uma década após o lançamento do livro, o Hamas permanece financiado pelo Irã, uma ditadura religiosa islâmica xiita. Seus líderes pregam a conquista do mundo em nome de Alá. Seu objetivo prático é a morte dos infiéis - todos os não muçulmanos, o que inclui você, que lê este post.)

"Seu amor pelos muçulmanos e sua devoção a Alá nunca esmoreceram", insiste o autor. "Ele ansiava pela paz para seu povo e havia trabalhado a vida toda para atingir aquele objetivo".

Mosab, que com o passar dos anos se tornara o guarda-costas do pai, e que se considerava "seu aluno e confidente", é aqui definitivo em sua relação com a figura paterna, um dos fundadores do Hamas. "Ele era tudo para mim. O melhor exemplo do que significava ser um homem". 

Após mais um atentado terrorista com muitas vítimas, temia pela vida do pai, pois acreditava que o governo israelense estava determinado a matá-lo. "Embora não tivesse organizado os atentados suicidas, ele, de qualquer maneira, era culpado por ter ligações com os envolvidos no massacre".

Pondera também que "além disso, ele tinha informações que poderiam ter salvado vidas e não as divulgara". Ele tinha convicção que Hassan poderia ter detido a escalada da violência. "Meu pai tinha influência, mas não sabia usá-la. Poderia ter tentado deter a matança, mas não o fizera".

O pacote que levou o primogênito de um dos sete fundadores do Hamas a cooperar com o serviço de inteligência de Israel era complexo e envolvia variáveis improváveis. Uma delas foi sua aversão à violência e arbitrariedade dos líderes do grupo contra os próprios integrantes, onde sub-líderes exerciam um comportamento oposto ao do seu pai.

Outra foi a conversão do devoto e religioso Mosab ao cristianismo. Ao ter acesso na cadeia a uma Bíblia vertida para o árabe, ele se identificou muito mais com a postura humanitária e os ensinamentos de tolerância de Jesus Cristo do que com os preceitos intransigentes do colérico Alá.

Foi o amor pelo seu povo e pela vida humana que levaram Mosab Yousef a rejeitar a política indiscriminada de terrorismo praticada pela organização criada, com outros propósitos, por seu pai. Segundo ele, contribuir para evitar a morte de inocentes - sejam muçulmanos, judeus ou cristãos - se tornou sua causa maior.

E, ao lado desta, sem sombra de dúvida, a possibilidade de proteger a vida do pai. Que, a certa altura, passou a ser ameaçada pelo próprio Hamas, quando Hassan deu declarações públicas favoráveis a criação dos dois Estados. 

Mosab diz que a visão do seu pai sobre a questão palestina-israelense evoluíra com o passar dos anos. Ele teve influência nisso, mas não só: o pai ouvia a todos e gostava de absorver o conhecimento alheio. Como frisa o filho, "por esse motivo sua visão era muito mais clara e ampla do que a dos outros líderes do Hamas".

"Ele via que Israel era uma realidade imutável e reconhecia que muitos dos objetivos do Hamas eram ilógicos e inalcançáveis", conta Mosab. "Queria encontrar um meio-termo que ambos os lados pudessem aceitar sem se humilhar e perder o respeito".

O autor conta que no primeiro discurso público que Hassan fez após um longo período na prisão (falo dela mais à frente), "ele sugeriu a possibilidade de haver dois Estados, o que traria uma solução para o conflito. Ninguém no Hamas tinha dado uma sugestão desse tipo". 

Com isso, admite, "meu pai estava reconhecendo o direito de existência de Israel!"

Esse reconhecimento, porém, era inaceitável para o Hamas. O poder político e financeiro do grupo - leia-se os seus líderes - dependia do não-reconhecimento do Estado judeu. Àquela altura, a "causa" do Hamas não era um fim. Era um meio que assegurava status e dinheiro aos chefes da organização.

E mais ainda com a possibilidade, surgida em 2005 (cinco anos antes da publicação do livro), do Hamas se constituir em um partido político e disputar as eleições para governar os palestinos.

Hassan Yousef foi questionado e pressionado para retroceder. Para desgosto de Mosab, o pai recuou.

Depois de ter participado de inúmeras operações que evitaram atentados à bomba e que levaram à prisão de terroristas (vale a pena você ler a biografia para conhecer os detalhes destas ações), a única preocupação de Mosab era com a segurança do próprio pai, paradoxalmente cada vez mais um alvo potencial do Hamas.

Mosab confessa que seu idealismo foi derrotado pela escalada de violência e pela cupidez ilimitada do grupo. Não via escapatória para si mesmo, nem para suas aspirações, nem para o povo palestino. O círculo vicioso de ódio e ignorância estava de tal forma entrelaçado que ele capitulou.

Articulou com o serviço secreto israelense sua própria prisão e a prisão do pai - acreditava que Hassan estaria mais seguro em uma cadeia do que na Cisjordânia. E ele mesmo, Mosab, preso, estava a um passo de abandonar aquele mundo. Combinou que seria libertado após um tempo encarcerado e em seguida tirado do país.

Via Síria, foi para os Estados Unidos, sozinho. Seu projeto era recomeçar a vida, do zero. Um jovem palestino cristão em mundo desconhecido. Mas não é fácil deixar uma vida (ainda mais uma vida como essa) para trás. Fosse uma tentativa catártica de se desconectar do seu passado, uma carta de amor ao pai ou uma aposta em um novo ponto de partida, resolveu escrever a própria história. 

"Meu nome é Mosab Hassan Yousef. Sou o filho mais velho do xeique Hasan Yousef, um dos sete fundadores do Hamas. Nasci na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, e faço parte de uma das famílias islâmicas mais religiosas do Oriente Médio". 

Editora Sextante, 287 páginas |  1a edição  | Copyright  2010  |  Tradução Marcello Lino 

Título original: "Son of Hamas"

"Seis dias de guerra", por Michael B. Oren


A guerra estava chegando em Israel. 

"Por todo o país, milhares de pessoas ocupavam-se em cavar trincheiras, construir abrigos e encher sacos de areia num ritmo febril. Em Jerusalém, faziam-se exercícios diários de proteção contra ataques aéreos em escolas adaptadas para servirem de abrigo. Promoveu-se uma campanha emergencial de coleta de sangue e encomendaram-se unidades extras de plasma no exterior. Criaram-se comitês para reunir víveres essenciais, para substituir trabalhadores convocados para a frente de guerra e para evacuar crianças. Prepararam-se 14 mil leitos hospitalares e estocaram-se antídotos para vítimas de gás venenoso. Cavaram-se cerca de 10 mil sepulturas".

As ameaças constantes aguçaram o sentido de urgência dos judeus. O Egito vinha há semanas em preparação ostensiva para atacar Israel. Suas tropas estavam mobilizadas nas fronteiras, em zonas pretensamente desmilitarizadas. Vôos egípcios de reconhecimento sobre instalações estratégicas israelenses alarmaram o governo. Os países árabes se organizavam para um ataque conjunto.

Era junho de 1967. Shukayri, presidente da OLP, exultava. "Destruiremos Israel e seus habitantes!"

O rei Hussein da Jordânia foi ao Cairo celebrar o acordo militar com o presidente Gamal Abdel Nasser. Ao retornar à Aman, declarou que "todos os exércitos árabes cercam Israel agora". Confiante, exaltou a união de "Síria, Jordânia, Iraque, República Árabe Unida, Iêmen, Líbano, Argélia, Sudão e Kuwait... não existe diferença entre um e outro povo árabe, entre um e outro exército árabe".

Os números eram mesmo portentosos. Do Iraque viriam quatro brigadas e dezoito caças. A Jordânia entraria com onze brigadas, 56 mil homens, 270 tanques Centurions e Pattons e vinte e quatro caças Hawker Hunter. A Síria já tinha em posição 50 mil soldados e 260 tanques. Todos estes exércitos estavam coordenados com os 130 mil soldados, 900 tanques e 1.100 peças de artilharia egípcia para o que Nasser chamou de "a operação que surpreenderá o mundo".

As ruas poeirentas do mundo árabe estavam em polvorosa. Era como se estivessem na véspera de uma grande final de Copa do Mundo. A capital do Egito, destaca Oren, "estava enfeitada com cartazes que representavam soldados árabes atirando, esmagando, estrangulando e trucidando judeus barbados e de nariz adunco".

A Rádio Cairo, estatal egípcia atentamente ouvida em todos os países árabes (era como uma Al-Jazeera da época), inflamava sua enorme audiência. Irradiava como se fosse uma animadora de torcida: "O Golfo de Aqaba é árabe, árabe, árabe". Empolgada, ameaçava não só os israelenses, como "falava" com os Estados Unidos: "Milhões de árabes estão se preparando para explodir todas as instalações americanas, toda a sua existência, América".

Assim, embora ninguém soubesse exatamente quando, a partida que ainda estava por começar já tinha o seu resultado assegurado (na visão entusiasmada das massas do Egito, da Síria e da Jordânia). Já o populacho não discernia o que era bravata e o que era capacidade militar.

É esta a história que o diplomata e historiador Michael B. Oren, nascido em Nova Jersey, nos traz. Para nos fazer entender os desdobramentos, ele volta alguns anos no tempo e destrincha meticulosamente, em cada um dos países protagonistas e periféricos, os acontecimentos que levaram à guerra.

Eu não vou contar essa história. Quero dizer, as movimentações táticas, os ataques, as estratégias. Quem quiser conhecê-las que leia o livro. Que não é só é muito bom, como busca dar a visão de ambos os extremos do confronto - incluindo as superpotências da Guerra Fria, EUA e URSS.

Quero me ater mais às narrativas. As elaboradas antes, durante e depois do conflito.

Como todo mundo sabe, aquilo lá sempre foi um barracão prestes a explodir os 365 dias do ano. E - poucos anos antes da guerra que é tema do livro - houve um dia em que os árabes se depararam com um problema novo. Israel vinha desenvolvendo tecnologia para irrigar o deserto de Negev.

O Negev sempre foi uma área imprestável para a ocupação humana. Se os israelenses fossem bem sucedidos, pensaram, o deserto se tornaria perigosamente habitável. Era de fato uma área enorme no interior da Palestina. Caberiam ali até três milhões de pessoas. Ou seja, três milhões de judeus.

Estavam em 1964. Consternada, a Síria "clamou por uma 'guerra popular' para destruir a conspiração sionista". A Jordânia e a Arábia Saudita se alinharam com os sírios. O Egito não achava o momento adequado. Acreditava que precisariam se preparar. Cauteloso, o carismático presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser,  promoveu uma conferência de cúpula dos Estados árabes.

A primeira ideia dos árabes foi desviar o Rio Jordão e impedir que a água do rio chegasse a Israel, frustrando os planos dos judeus. Julgaram que era também um momento potencialmente adequado para escalar o conflito.

"A conferência criou um Comando Árabe Unificado (CAU) para preparar uma campanha militar ofensiva", explica Oren, "para prover de material bélico a Jordânia, o Líbano e a Síria". O plano era colocar a "excelente força aérea do Iraque a serviço do CAU e estabeleceram-se as condições para travar a guerra: sigilo, unidade e preparação militar total". 

A guerra do extermínio de Israel, entretanto, ainda não estava pronta para ser deslanchada. Por motivos variados, que o autor esmiuça bem, tiveram que colocar o pé no freio. Nas duas cúpulas subsequentes, em Alexandria, em setembro daquele ano, e em Casablanca, Marrocos, um ano mais tarde, "ampliou-se o orçamento do CAU para quase US$ 600 milhões e traçaram-se planos para a 'eliminação da agressão israelense' em algum momento de 1967".

Nos primeiros meses de 1967, houve algumas escaramuças. Nada de sério. Afinal de contas, as fronteiras de Israel eram nitroglicerina pura. Os árabes se consideravam bem armados pelos soviéticos. Ainda que as lideranças de cada país tivessem dificuldades em se entender, a hora do ajuste de contas parecia chegar. Mas faltava a fagulha que acenderia o estopim. 

No entendimento do autor, o gatilho foi uma informação equivocada do serviço secreto russo, à feição para os sonhos de grandeza do presidente egípcio. Os soviéticos teriam identificado uma movimentação de tropas israelenses na fronteira com a Síria. Interpretaram como se fossem indícios de uma invasão do território sírio. Os israelenses negaram veementemente. Ainda assim, os russos comunicaram aos egípcios. Fosse ou não verdade, era uma versão conveniente.

Nasser, agora seguro quanto à preparação e ao armamento dos seus exércitos, julgou que por fogo no paiol, com uma intervenção egípcia em favor dos sírios, contribuiria para o seu protagonismo na política árabe.

Com isso em mente, autorizou fossem postos em prática os planos militares para a invasão de Israel. Determinou a expulsão das forças da UNEF (uma força internacional estacionada no Sinai, evitando choques de fronteira entre Egito e Israel). Enviou milhares de soldados para a fronteira. Fez vôos de reconhecimento sobre o território de Israel. Fechou os Estreitos de Tiran, impedindo o tráfego dos navios comerciais israelenses.

Articulou com os governos da Síria, Jordânia e Iraque. Pediu suporte militar ao governo russo. Rechaçou tentativas norte-americanas que buscavam evitar o conflito. Mandou ultimatos a Tel Aviv. Surgiram dúvidas quanto à estratégia de Nasser. Seria jogo de cena? Ele fazia tudo à luz do dia. 

Os judeus estavam na expectativa de uma intervenção dos Estados Unidos que dissuadisse os árabes. Ou que conseguissem persuadir os russos a dissuadirem os árabes. Em vão. Diante da escalada diária das perspectivas de guerra, Israel se mobilizou - como vimos no primeiro parágrafo desse post. 

A guerra estava chegando em Israel.

As forças armadas de cada país estavam organizadas nas fronteiras, como pistoleiros se encarando, para ver quem sacaria primeiro. Neste caso, a todos convinha a desculpa da auto-defesa. Principalmente porque se sentiam ameaçados pela pressão das duas superpotências, às quais não interessava a guerra no Oriente Médio, e ambas prometiam pesadas sanções a quem se atrevesse. Questões políticas internas pesavam em ambos os lados.

Nesta encarada tensa, o Estado de Israel, cercado por todos os lados, acuado, decidiu atacar. Os Estados Unidos, que vinham cortando um dobrado para por panos quentes na situação, cansaram. O secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, perguntado se os Estados Unidos continuariam a conter Israel, respondeu: "Não acho que seja tarefa nossa conter ninguém".

A piaba ia cantar.

Às 8h15 da manhã do dia 5 de junho de 1967, hora do Egito, os pilotos egípcios já haviam feito suas patrulhas e tinham retornado às bases para o café da manhã. No ar, restaram quatro aviões de treinamento (nenhum deles armado).

O plano israelense exigia que doze esquadrões de diferentes bases se encontrassem silenciosamente sobre onze alvos situados a distâncias variando entre vinte e quarenta e cinco minutos de vôo. "Era de uma complexidade labiríntica e extremamente arriscado", considera Oren. "Todos os jatos do país, à exceção de doze, foram lançados no ataque - os aficcionados do futebol americano chamariam-no de 'Ave-Maria' - deixando os céus do país virtualmente indefesos".

A ofensiva de Israel teve início. Seus aviões entraram no espaço aéreo do Egito.

Após duas horas de sucessivos e coordenados ataques israelenses, o governo egípcio soltou um comunicado: "Com uma incursão aérea sobre o Cairo e por toda a RAU, Israel começou seu ataque às nove horas de hoje. Nossos aviões lutaram e repeliram o ataque".

Os jornalistas estrangeiros não tiveram permissão de se aproximar da linha de frente e as linhas telefônicas internacionais foram cortadas. "Por toda a capital os cidadãos comemoravam. 'As ruas transbordavam de manifestantes', relembrou Eric Roleau, correspondente do Le Monde no Oriente Médio. 'Canhões antiaéreos atiravam. Centenas de milhares de pessoas entoavam 'Abaixo Israel! Nós venceremos a guerra!"

O historiador reproduz o noticiário árabe do dia. "Os relatos do contra-ataque eram animadores. Um total de 86 aviões inimigos teria sido derrubado, incluindo um bombardeiro americano. As perdas egípcias registradas eram de dois aparelhos."

Segundo o embaixador americano no Cairo, "as notícias causaram muito alvoroço e aplausos, com a rádio tocando canções patrióticas, intercaladas com chamados de retorno à Palestina e reencontro em Tel Aviv".

As boas novas não se restringiam à mídia oficial. O Ministro da Defesa do Egito, Abdel Hakim Amer, telegrafou para seu congênere jordaniano, informando que "a despeito do ataque de surpresa, os israelenses perderam 75% de seu poderio aéreo". Complementou que "o exército egípcio estava contragolpeando e preparando uma ofensiva desde o Sinai".

A Força Aérea Egípcia informou às 10h da manhã "ter derrubado 161 bombardeiros israelenses". Os números eram tão estupendos que "Nasser ficou desconfiado" dos seus próprios militares. "As multidões celebravam, cantando, dançando e aplaudindo as notícias dadas de hora em hora", rememorou muito tempo depois Anwar Sadat.

A Rádio Cairo alardeava: "Nossos aviões e nossos mísseis estão neste momento bombardeando todas as cidades e povoados de Israel". A emissora convocava "todos os árabes a vingarem a dignidade perdida em 1948, atravessando a linha do Armistício até o covil da gangue, Tel Aviv".

Um pouco antes, às 9h30, o presidente do Egito telefonara para o Rei da Jordânia, Hussein, relatando as pesadas perdas israelenses e a destruição das bases aéreas de Israel. Nasser exortou o rei a "tomar posse rapidamente da maior quantidade possível de território para estar à frente do cessar-fogo das Nações Unidas".

Embora a última coisa que Israel quisesse naquele momento fosse envolver uma segunda frente na guerra (com a proibição expressa do ministro da Defesa de Israel, Moshe Dayan, de não responder a nenhuma provocação jordaniana na fronteira), o rei Hussein se pronunciou na Radio Aman que "a Jordânia fora atacada e que a hora da vingança havia chegado".

Ao mesmo tempo, o governo do Iraque assegurou à Jordânia que os aviões iraquianos "já estavam em ação contra Israel". Ainda que Israel não houvesse dado um único passo em direção ao território do país, o rei deu o comando para bombardear os judeus. "Eles começaram a batalha", mentiu. "Agora estão recebendo a resposta pelo ar. A sorte está lançada."

Na Síria também havia euforia. A Rádio Damasco trombeteou que "a força aérea síria começou a bombardear as cidades israelenses e destruir suas posições". O embaixador soviético na Jordânia celebrou. "Nossa expectativa é a de que os árabes vencerão a guerra se lhes for permitido travá-la até o fim".

Seguindo as ordens expressas de Moshe Dayan, as FDI permaneciam impassíveis. Mas a situação mudou quando morteiros da Legião Árabe estacionada na Jordânia lançaram as primeiras seis mil bombas sobre a Jerusalém judaica. Segundo Oren, o rei Hussein "assistiu ao ataque em seu jardim, onde seus filhos pequenos vibraram com o estrondo das bombas".

As bombas, entretanto, já eram retaliação israelense. O conselheiro real, Wasfi- al-Tall, que desde o início se opusera à aliança da Jordânia com o Egito, previa que a situação não ia acabar bem para os jordanianos. Mandou a real para o rei. "Perdemos tudo o que Vossa Majestade construiu ao longo do seu governo!" Se virou então para o líder da OLP, defensor dos egípcios, e cobrou: "E onde está a força aérea egípcia? Onde estão seus MiG, seus mísseis?"

O desespero do conselheiro não era compartilhado pelo primeiro-ministro Jum'a, que fez um pronunciamento pelo rádio: "Hoje estamos vivendo as horas mais sagradas de nossas vidas. Unidos a todos os demais exércitos da nação árabe, lutamos a guerra da honra e do heroísmo contra nosso inimigo comum. Esperamos anos por essa batalha para apagar a mancha do passado".

Os alto-falantes de Jerusalém eram mais contundentes e exortavam os fiéis a "pegar em armas para recuperar seu país roubado pelos judeus". O correspondente da Lif, registrou os árabes "comemorando a queda do Palácio do Governo aos gritos de 'Amanhã tomaremos Tel Aviv!"

O presidente da Síria, Nureddin al-Atassi, também fazia coro às exortações. "Decidimos que esta seria a batalha da nossa libertação final do imperialismo e do sionismo", declarou. "Nos encontraremos em Tel Aviv", afirmou. Mais um a marcar encontro na capital israelense. Haja gente.

O exército jordaniano pediu cobertura aérea à Síria. O general Fawzi assegurou que "os aviões sírios atacariam as forças israelenses na área de Jenin ao raiar do dia seguinte". 

O comandante sírio Hafez al-Assad reportou uma vitória avassaladora. Assegurou que "nossas forças realizaram um pesado bombardeio contra o inimigo em todo o setor norte", completando que "o inimigo perdeu a maior parte do seu poderio aéreo".

Na verdade, como relata Michael Oren, restava à Síria pouca força aérea. "Dois terços dela - dois bombardeiros Ilyushin-28, 32 MiG-21, 23 MiG-17 e três helicópteros - haviam sido eliminados em oitenta e duas surtidas diurnas realizadas pela FAI contra as bases aéres de Dmair, Damasco, Saiqal, Marj Rial e T4. A base iraquiana de H-3 foi também atingida e dez de seus aviões destruídos".

Ao contrário da disléxica e mal intencionada narrativa árabe, ao longo do primeiro dia da guerra Israel trucidou a força aérea egípcia, síria e iraquiana. Enquanto suas forças eram derretidas, os líderes e a mídia dos três países e mais a Jordânia permaneciam divulgando o triunfo árabe e o aniquilamento do inimigo judeu. Não só este discurso era levado à população dos seus países, mas eram também os informes trocados entre as lideranças políticas e militares.

Os maiorais da cúpula árabe asseguravam aos seus colegas árabes que estavam, cada um deles, esmagando os judeus. Mas, no campo de batalha, a história era outra. E nem Nasser e nem Hussein "estavam a par da situação periclitante dos seus exércitos". Os ministros da Defesa de ambos os países simplesmente mentiram para os seus próprios superiores. 

"Os órgãos de segurança egípcios, rádio e imprensa, continuavam a alardear vitórias extraordinárias, e os comunicados jordanianos diziam que as forças israelenses haviam sido repelidas em Jerusalém e Jenin e trinta e um de seus aviões abatidos".

"Os oficiais de Nasser tinham medo de colocá-lo a par, ao passo que os de Hussein,  carentes de comunicação com o campo, nada sabiam. Ninguém acreditaria facilmente que a aviação egípcia, o coração do esforço de guerra árabe, fora aniquilada em questão de horas e nem que os tanques israelenses avançavam em duas frentes enquanto os sírios permaneciam inertes".

Só quando Nasser foi até o Alto Comando é que ele tomou ciência do que estava acontecendo. "Lá encontrou uma enorme balbúrdia. 'Amer, bêbado ou drogado, ou as duas coisas, estava berrando ao telefone". Primeiro mandou atacar, e em seguida mandou recuar. Na verdade, os egípcios não sabiam o que fazer.

Ou melhor, sabiam sim. Diante da catástrofe militar, rapidamente a narrativa adotada pelo Egito e demais países árabes foi a de alardear uma suposta participação norte-americana na guerra. "Nasser e 'Amer concordaram em sustentar a ficção do envolvimento anglo-americano direto na guerra, tanto para minimizar a desonra do Egito quanto para incitar os soviéticos a intervirem".

A emissora do Estado, a Rádio Cairo, às 18h05 endossou o estratagema e irradiou: "Os Estados Unidos são o inimigo. Os Estados Unidos são a força hostil por trás de Israel. Os Estados Unidos, ó árabes, são o inimigo de todos os povos, os assassinos da vida, os que fazem correr sangue, os que os impedem de liquidar Israel".

Estavam ainda no primeiro dia da guerra. Mal tinham completado dez horas desde o primeiro ataque. Depois de passar o dia divulgando a destruição de Israel pelas forças egípcias e aliadas, a transmissão agora denunciava os americanos como os grandes agressores. O populacho se exaltou.

"A começar por Beirute, todas as embaixadas e consulados dos Estados Unidos no mundo árabe foram atacados por turbas enfurecidas". 

Na verdade, os Estados Unidos estavam totalmente fora do conflito - militar (por ausência) e diplomaticamente (por incompetência). Mas o povo árabe acreditava piamente que os americanos estavam por trás dos israelenses.

Os países aliados, entretanto, já começavam a desmontar do cavalo. O chefe da Inteligência militar jordaniana, general Ibrahim Ayyub, convocou seu Estado Maior às 19h. "Acabo de receber a informação de que 90% da força áerea egípcia foi destruída no solo por Israel."

Embora Jordânia e Síria ainda fossem cumprir um papel (acanhado) no cenário de guerra, o Egito, a maior das forças da região e aquele que insuflou o conflito, chegou ao fim do primeiro dia de combate já totalmente estropiado. E as coisas ainda iriam piorar no campo de batalha. As forças egípcias fizeram uma das mais confusas retiradas da história das guerras.

Quanto à retirada, 'Amer justificaria mais tarde a sua decisão citando o colapso da força aérea egípcia e a queda da primeira linha de defesa: "A retirada era a única forma que eu tinha de impedir a total destruição e o aprisionamento do exército". No entendimento de Oren, porém, esses foram exatamente "o resultado de sua ordem de mandar um vasto exército reunido em mais de vinte e quatro dias se retirar em menos de vinte e quatro horas".

"O relacionamento misterioso entre Nasser e 'Amer traduzira-se em anarquia no campo de batalha", enfatiza o historiador. "Talvez acreditassem que seria possível reviver o mito de 1956, salvar as aparências apresentando a retirada como uma manobra tática imposta pela esmagadora superioridade do imperialismo". Ou, então, "talvez esperassem que um recuo tão dramático aos braços soviéticos obrigariam-nos a interceder. Mas a questão de por que a ordem foi dada e por quem, se Nasser ou 'Amer, permanece em discussão. O exército egípcio estava fugindo".

Porque, recapitulando, foi isto o que aconteceu: durante mais de três semanas os egípcios se acumularam na fronteira para atacar os israelenses. Aterrorizados e sem saber quando os egípcios iriam atacar, os israelenses se lançaram em um ataque súbito; o ataque foi espetacularmente bem-sucedido; e aí o exército egípcio, em vez de se reposicionar para conter a ofensiva israelense, danou de correr de volta para o Egito, largando veículos e armamento, com os judeus em seu encalço.

Era o caos no deserto.

No gabinete das lideranças árabes, porém, uma contra-ofensiva estava sendo montada. Não para aplicação no teatro de guerra, mas para o palco das narrativas. Frente à derrocada após míseras dez horas de confronto, Nasser já discursava que não fora Israel quem derrotara o Egito - e sim os Estados Unidos e a Inglaterra, juntos.

Na ONU o que havia era um barata-voa. Diante das versões conflitantes e contraditórias, os representantes de cada país envolvido entravam e saíam do plenário. Os americanos queriam um cessar-fogo imediato; os israelenses, em vantagem, queriam adiar o cessar-fogo; os egípcios, crentes que os soviéticos viriam em seu socorro, não queriam o cessar-fogo.

Diante da hesitação do representante do Egito, El Kony, o representante de Israel, Goldberg, ironizou. "Parece que os árabes sempre concordam tarde demais com as resoluções da véspera".

No outro lado do oceano, bem mais ao sul de Nova York, o povo local começava a tomar pé da situação. "Os egípcios estavam arrasados", comenta o historiador. "Durante todo o dia eles ouviram relatos arrebatadores das vitórias árabes".

A Rádio Cairo insistia em informar que o exército egípcio "varrera os ataques israelenses a Kuntilla e a Khan Yunis e estava penetrando o território inimigo".

Manifestações de apoio ao Egito choviam em todo o mundo. "Estamos extremamente indignados com a ação dos reacionários israelenses, agentes do imperialismo americano e britânico", escreveu o líder comuista vietnamita Ho Chi Min. Uma declaração oficial soviético proclamava "total confiança" na "luta justa" dos árabes "contra o imperialismo e o sionismo".

Os egípcios, além de atribuir aos americanos e ingleses o ataque, acusaram a União Soviética de fornecer "armas defeituosas" ao Egito. A URSS retrucou: "As armas que fornecemos aos vietnamitas  têm se revelado seguramente superiores às americanas".

A Rádio Damasco embarcou na nova narrativa. "Bombardeiros britânicos, decolando em ondas incessantes dede Chipre, estão ajudando e abastecendo Israel, e atacando nossas posições avançadas".

Nasser bradava que os judeus pilotavam caças ianques com mapas da CIA, segundo "confissões de pilotos abatidos". Soltou um comunicado esbravejando que "convocou as massas árabes a liquidar todos os interesses imperialistas". Rompeu relações com os Estados Unidos, no que foi rapidamente seguido por outros seis Estados árabes (Síria, Sudão, Argélia, Iraque, Mauritânia e Iêmen). Liderou um movimento de expulsão dos embaixadores norte-americanos e ingleses dos países árabes.

A Rádio Argel proclamou que "a América é agora o inimigo número 1 dos árabes", complementando que "a presença norte-americana deve ser varrida da pátria árabe".

A Rádio Aman afirmou que três porta-aviões americanos estavam operando no litoral de Israel (na verdade, um navio norte-americano, o Liberty, estava inadvertidamente próximo, e foi atacado pela força aérea israelense, matando mais de cem americanos, em um dos mais graves acidentes diplomáticos da década).

Ou seja, não só não havia apoio dos EUA, como seu único navio na região foi destroçado por aquele que foi acusado de ser seu mero fantoche, Israel.

Que situação.

O presidente egípcio ligou do Cairo para o rei jordaniano, usando uma linha civil não codificada. A conversa foi gravada pela inteligência israelense e amplamente divulgada.

"Diremos que os Estados Unidos e a Grã Bretanha estão atacando ou somente os Estados Unidos?", perguntou Nasser. Hussein respondeu que ambos. "Por Deus!", Nasser exclamou, animado. "Eu faço um pronunciamento, o senhor faz um pronunciamento e tentamos convencer os sírios a também fazerem um pronunciamento, dizendo que aviões americanos e britânicos estão agindo contra nós a partir de porta-aviões".

No mesmo diapasão ufanista, Nasser encerrou. "Nossos aviões estão atacando as bases aéreas israelenses desde de manhã."

Mas se a alegação de conspiração ocidental para ajudar Israel ajudou o rei a aplacar os palestinos, não alterou a sua situação periclitante. Ele já tinha apelado pela ajuda das forças sírias e sauditas estacionadas na fronteira, em vão. Deram como desculpa "falta de ordens". Os iraquianos ao menos mandaram uma brigada cruzar uma ponte - a Damyia -, mas foram dizimados pela FAI.

Oren conta que "exasperado, o rei saiu do quartel-general, pediu um jipe e desceu correndo para o Vale do Jordão". Ao chegar lá, murmurou: "Jamais vou esquecer essa alucinante visão da derrota". O que ele tinha à frente eram "estradas atulhadas de caminhões, jipes e veículos de todo o tipo amassados, retorcidos".

Estavam apenas no segundo dia da guerra. Israel procurava estabilizar o front e, doravante, manter os territórios ocupados durante as horas de guerra. Os árabes queriam salvar as aparências. 

Apesar de todo o jogo de cena, de todos os "encontros" marcados em Tel Aviv, ao fim deste dia, em uma mensagem ao rei da Jordânia, Nasser reconhecia o fiasco. " Nesse exato momento nossa frente está se desintegrando", escreveu. "Ontem a força aérea do nosso inimigo nos infligiu um golpe mortal. Desde então nossas forças terrestres têm estado privadas de apoio aéreo e obrigadas a resistir ao poder de forças superiores", admitiu. 

Em seguida, comunicou o recuo, a evacuação e a expectativa por um cessar-fogo.

Com menos de 48 horas de um combate que duraria ainda mais quatro dias - apenas -, os países que passaram os últimos anos escalando a guerra e prometendo a extinção do Estado de Israel capitulavam. Os dias seguintes ainda teriam intensa atividade militar, política e diplomática; mas as consequências da guerra já estavam todas rascunhadas.

Ninguém ali era inocente. Se fossem, não teriam chegado às posições que ocupavam. Nasser queria assumir a liderança do mundo árabe. Hussein queria fortalecer sua posição na Jordânia. A Síria queria abocanhar novamente um pedaço da Palestina. Todos queriam se ver livres dos refugiados palestinos.

Para seus projetos pessoais de poder, Israel era um pretexto conveniente.

A mesma Israel que, antes amedrontada, ao atacar e estraçalhar seus inimigos quis pegar o máximo das terras que invadira. E não parou por aí. Nos dias seguintes, avançou pelo Sinai, ocupou Jerusalém e diversas outras cidades da Cisjordânia, invadiu as colinas de Golan.

O mapa geopolítico do Oriente Médio fora redesenhado em algumas dezenas de horas.

Um novo capítulo do conflito árabe-israelense estava por se desenrolar. A manutenção das terras conquistadas ao Egito, à Jordânia, ao Líbano e à Síria se tornaria o pivô da nova etapa (não que a extinção sumária de Israel tivesse saído de pauta) bélica da região.

O cenário desaguaria na Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando uma coalizão árabe avançaria contra Israel. A intenção era não só retomar as terras, mas recuperar a honra perdida. Uma retaliação contra os judeus era fundamental para o resgate da narrativa.

Mas aí já é outra história.

Bertrand Brasil,  529 páginas | 1a edição, 2004 | Copyright 2002 |  Tradução Pedro Jorgensen Jr

Título original: "Six Days of War"

"Israel x Palestina", por James Gelvin


James Gelvin é um norte-americano estudioso do mundo árabe. É professor de História do Oriente Médio na Universidade da Califórnia e especialista na história do Leste Árabe. Entre os muitos títulos que publicou, este "Israel x Palestina" é o único traduzido para o português. 

Sua produção literária sobre a região é vasta. "Divided Loyalties: Nacionalism and Mass Politics in Syria" (1998); "The Modern Middle East: a History" (2004); "The Arab Uprisings" (2012); "Global Muslims in the Age of Steam and Print - 1850-1930" (2013); "The New Middle East" (2017); "The Contemporary Middle East in an Age of Upheaval" (2021).

Os títulos são bons. Lamento que não haja aqui um universo leitor que viabilize o investimento do mercado editorial nas suas obras. Aos brasileiros coube apenas este filho único, lançado em 2005 e que, diante da instabilidade da região, passou por sucessivas atualizações - em 2007, 2013 e 2021.

Ou seja: com o pau quebrando na Faixa de Gaza desde 7 de outubro, ele vai ter que esperar pelo desenlace desta nova guerra para mandar para o prelo mais uma (extensa) atualização.

Vale estabelecer que este título do Gelvin é um livro de espírito didático, mas com um leve viés. Compila informações de diversas fontes e busca estabelecer uma narrativa que, em essência, fundamente os direitos do povo palestino às terras que compõem a Palestina histórica.

Não digo que está certo, nem que está errado. Ele interpreta o conflito sob uma lente árabe. Um enfoque que, na minha opinião, não contamina o resultado final do texto. É válido. Difícil não pender para um ou outro lado em uma questão tão sanguínea. Dou crédito ao ponto de vista do professor.

Ainda que neste seu livro eu divirja aqui ou acolá, a fundamentação do historiador é legítima.

"Narrativas nacionalistas, como aquelas elaboradas pelo sionismo e pelo nacionalismo palestino, nos oferecem uma interpretação incompleta e parcial da história", diz o norte-americano. "As narrativas nacionalistas assumem que as nações sempre existiram no decorrer da história", continua, mas ressalvando que os movimentos nacionalistas, mais do que meramente darem suporte a estas narrativas, "criam essas nações".

Antes dele mesmo fazer a sua digressão histórica, destaca que "o sionismo e o nacionalismo palestino foram fundados no mesmo molde". Para ele, "as narrativas nacionalistas ocultam ou ignoram as similaridades entre as nações cuja história eles querem valorizar e as demais nações; seu relato confirma o direito daquela nação de ser soberana e ter suas próprias regras em um pré-definido pedaço de terra".

Quem conhece o trabalho do historiador Timothy Snyder está familiarizado com essa abordagem.

Gelvin abre o livro da História e explica que o território hoje chamado de Palestina (cujo nome vem de Filistina, ou seja, do antigo povo dos filisteus) foi "uma das primeiras áreas conquistadas pelos árabes muçulmanos depois do surgimento do islamismo no século VII". Com o passar dos anos, o povo que vivia nos vilarejos locais adotou o idioma árabe e a religião muçulmana.

Ressalta que as povoações se situavam nas fraldas da região montanhosa. A parte litorânea ficava sob domínio dos beduínos - nômades de conduta agressiva e refratários a qualquer espécie de subordinação. Vez por outra a região era alvo de alguma expedição guerreira turca.

Em 1453 os otomanos capturaram Constantinopla, a capital do Império Bizantino (que, por sua vez, substituíra o Império Romano), e a rebatizaram de Istambul. É o marco histórico do início do Império Otomano. O domínio se estendeu dos Bálcãs ao norte africano, incluindo o Oriente Médio e o Egito. A Palestina estava neste pacote aí.

Não tinha relevância econômica ou estratégica, mas tinha importância religiosa e, portanto, simbólica. Assim, com a conquista, o Império Otomano, que era islâmico (sunita), passara a ter no seu portfolio as três cidades sagradas: Meca e Medina, na Arábia, e Jerusalém, na Palestina.

Nos conta o especialista que houve uma breve alternância de poder durante o século XVIII, quando um beduíno - Zahir al-'Umar - tomou o controle militar da Galileia e estabeleceu um principado cuja capital era Acre. Já a região onde hoje fica o Líbano foi tomada por um ex-escravo egípcio, Ahmad Al-Jazzar, conhecido como Al-Saffah (o carniceiro).

A população local era basicamente rural. Até então sua única possibilidade de inserção econômica era fazendo o abastecimento de víveres das caravanas que vinham em peregrinação religiosa para Jerusalém. Mal comparando, era como vender biscoito em engarrafamento ou, na melhor das hipóteses, camarão na praia. Uma atividade sazonal e de baixa rentabilidade.

Os moradores da Palestina eram este povo simples, habitantes pacíficos de uma zona de passagem. Sem nacionalidade, governo ou regulação. Viviam em aldeias e sem uma liderança central, montando cada uma a quatro a cinco clãs familiares. Quando necessário, os mais velhos se reuniam em uma espécie de conselho. Não havia entre eles o conceito de propriedade do solo.

Este esquema acéfalo havia dificultado por séculos que os cobradores de impostos do Império Otomano tivessem a quem taxar. Era então uma terra pobre, quente, seca e improdutiva. Mas o surgimento de um mercado mundial veio mudar a história desta faixa desértica. Seus novos xerifes, o beduíno e o egípcio, encontraram uma vocação para a Palestina. A monocultura.

Seu longo isolamento econômico se alterou com a adesão à especialização no cultivo agrícola - principalmente do algodão. Comerciantes franceses se estabeleceram nos portos de Acre e Sidon e o algodão da Galileia começou a ser exportado para uma Europa que vivia o boom da Revolução Industrial. Os magnatas Al-'Umar e Al-Jazzar, à revelia dos otomanos, vendiam algodão em troca de armas europeias. Com o lucro do comércio, construíram um novo porto, Haifa.

Ainda que a narrativa neste ponto fique cronologicamente um pouco confusa, eu tentei me achar. Neste ponto o professor frisa que os otomanos do Império fizeram uma composição com os novos chefes locais, de forma que uma paz lucrativa vigorou por algumas décadas.

As coisas tornaram a mudar quando Mehmet Ali, filho de um pirata albanês, assumiu o controle do Egito. "Afirmando que os otomanos lhe prometeram o território que hoje é a Palestina, a Síria e o Líbano", em troca do seu apoio para conter uma rebelião na província otomana da Grécia, Mehmet advogou que a "Grande Síria" (composta pelas três regiões acima) era o prêmio que lhe era devido.

Gelvin conta que quem chefiou a ocupação da área foi seu filho, Ibrahim Pasha. O novo ocupante desarmou os locais e instituiu o recrutamento militar e taxas a serem pagas pelo povo. Investiu na modernização da infraestrutura local, construindo estradas para escoar a produção até os portos.

Os otomanos retomaram o controle da região em meados do século XIX. A esta altura o volume do comércio decaíra, porque um algodão melhor e mais barato estava sendo produzido em outras partes do planeta. Enfim, esta área erma e pouco rentável, distribuída em torno de mil vilarejos, que iam do mar Mediterrâneo ao rio Jordão, era o que então se chamava Palestina. Ufa.

Mark Twain, que visitou a Palestina em 1867, descreveu a região da seguinte forma em seu livro "Innocents Abroad": 

"[A Palestina] é uma região desolada, com um solo muito fértil, totalmente entregue as ervas daninhas - uma vastidão silenciosa e lúgubre (...) Nós não vimos sequer um ser humano em todo nosso caminho... raras eram as árvores e os arbustos. Até mesmo as oliveiras e os cactos, bons amigos até dos solos inférteis, já praticamente desistiram dessa terra".

Gelvin, entretanto, crê que a visão de Twain não representava a realidade.

Havia nela gente de todo lugar e religião. Inclusive judeus. Que vieram do Egito, do Líbano, da Síria, da Pérsia. Eram comerciantes. Mas nas últimas duas décadas do século XIX eles começaram a chegar em profusão. Compravam terras e vinham da Europa. Queriam se tornar fazendeiros do deserto.

Diziam: "Uma terra sem um povo para um povo [judeus] sem uma terra".

As terras não eram compradas diretamente dos palestinos humildes. Estes moravam nas franjas da região, mas não possuíam nada. O solo estava na mão de sírios, egípcios e libaneses (e de palestinos ricos emigrados), que tinham legalizado e se apropriado do terreno quando do código de terras de 1858, que atribuíra direito de propriedade aos habitantes (o tal direito que não havia antes).

A medida resolveu o problema dos turcos, que poderiam cobrar impostos dos donos do solo - os quais, por sua vez, o venderam para os moradores ricos das áreas urbanas, que pagavam as taxas.

Quando a indústria do algodão arrefeceu, as terras viraram um fardo para os seus proprietários. Não tiravam nada dela e ainda lhes custava mantê-las. Então aquela revoada de judeus querendo comprá-las foi uma mão na roda. Dane-se se os compradores eram judeus europeus. Pagavam bem.

Era uma solução que beneficiava também os locais. Os palestinos tinham retornado à semi-indigência, pois sua produção agrícola havia se inviabilizado. A chegada dos judeus latifundiários irrigou a economia e abriu empregos. A questão é que, mesmo sendo solução, a presença crescente dos judeus era um problema institucional. Eles não eram apenas grandes proprietários e empregadores. Eles se diziam donos daquela terra no papel e também por direito divino. 

O que trazia uma ameaça embutida. Esse "direito" queria dizer que eles não pretendiam ir embora.

O discurso da volta à Terra Prometida e o desembarque constante de mais judeus europeus acabou por se tornar fonte inesgotável de conflitos na virada do século XX. A injeção de recursos e a alta taxa de emprego se chocavam com a recusa árabe em aceitar os judeus como co-proprietários da História da Palestina (antecipo que a expressão é minha, não do autor). 

Para os palestinos, o problema começou aí. E James Gelvin faz uma profunda e rara digressão sobre a história judaica para contextualizar esta irrupção. Ele volta à Idade Média e discorre sobre as antigas comunidades judias da Europa, que concentravam 90% de todos os judeus do mundo.

Era uma época pré-absolutista. Não havia Estados. Diz o professor que os judeus viviam em guetos e se auto-regulavam - educação, atendimento médico, casamentos e funerais, julgamento de disputas etc. Era um reflexo daqueles tempos. A chegada do Estado absolutista, com sua concentração de poder, alterou este contrato social e desalojou os judeus da sua posição à margem da sociedade. 

"Durante o século XVIII, diversos líderes enérgicos - Luís XIV na França (reinou entre 1643-1715), Frederico, o Grande, na Prússia (reinou entre 1740-1786), Catarina, a Grande, na Rússia (reinou entre 1762-1796) e Maria Teresa (reinou entre 1740-1780) e José II na Áustria (reinou entre 1780-1790) - afirmaram a primazia do governante sobre seus súditos e sobre o território por eles habitado", explica o historiador.

"Embora os Estados por eles construídos não detivessem a eficácia, a regularidade e a variedade de atividades que os Estados modernos têm", assinala, "o modelo adotado de líderes estadistas fortes acabou desguarnecendo toda e qualquer tentativa de estrutura de mediação entre o governante e os governados".

Os judeus foram atingidos porque "entre essas estruturas de mediação estavam as corporativas, que davam aos súditos pertencentes a seu grupo, como os judeus, por exemplo, todas as autonomias locais que eles quisessem". Era o desmantelamento da autonomia cívica do gueto.

Embora Gelvin deixe uma certa lacuna nesta abordagem, ele frisa que "na Europa ocidental e central, a destruição de estruturas corporativas e a distinção legal que separava os judeus de seus compatriotas foram chamadas de 'Emancipação Judaica". Seu  apogeu teria acontecido durante a Revolução Francesa.

Enquanto "a promessa de liberdade, igualdade e fraternidade veio substituir (pelo menos na teoria) os privilégios aristocráticos e as rígidas hierarquias sociais", a cidadania francesa foi proposta aos judeus na Assembleia Nacional da França:

"Aos judeus como nação tudo deve ser negado, mas como indivíduos, tudo deve ser garantido. Eles devem ser cidadãos. Não pode haver uma nação dentro de outra nação. Não é tolerável que os judeus se tornem uma formação política separada, ou uma outra classe dentro do país."

Como bem ressaltou o autor, isso se deu na Europa ocidental e central - não só na França. A emancipação total dos judeus aconteceu na Grã-Bretanha (1858), Suíça (1866), Áustria (1867), Itália (1870) e Alemanha (1871). Mas no leste europeu a história foi diferente. A Rússia, por exemplo, não emancipou os judeus até 1915.

E, embora pareça ser apenas uma parte, é uma parte considerável. Cerca de 75% dos judeus do mundo viviam no leste europeu, e sua grande maioria dentro das fronteiras do Império Russo. Não que houvesse sido sempre assim; na verdade, os czares sempre tentaram manter os judeus fora da Rússia. O problema é que a Rússia não parava de crescer, tomando a terra alheia. 

E na terra alheia existente ao redor moravam muitos judeus. Para mantê-los longe de Moscou, os judeus que vieram no solo tomado à Polônia foram circunscritos aos "Limites do Assentamento Judaico", que iam do Báltico, no norte, ao Mar Negro, no sul. Na fronteiras destes limites ficavam a Letônia, a Lituânia, a Bielorrússia, a Ucrânia e o que restara da Polônia. Os judeus neorussos se acomodaram nestes países.

Segundo relata Gelvin, eles tinham que se manter em seus vilarejos (shtetls) e, entre si, falavam o seu próprio idioma, o iídiche - uma mistura de línguas que consistia, em grande parte, em alemão e hebreu, com um pouco de eslavo e até do francês antigo.

Se no centro e no oeste europeu os judeus tinham sido emancipados há muito como cidadãos, na Rússia o projeto para eles consistia em mantê-los segregados até que se "russificassem". Para tanto, em 1827 o governo russo começou a recrutar judeus para o Exército do czar. Eles eram convocados mais jovens que os russos cristãos, e o serviço militar era prestado até que completassem 25 anos.

O memorando que acompanhou a lei de recrutamento tinha um título extenso:

"Memorando sobre a transformação dos judeus para o benefício do império, através da gradual atração destes para professar a fé cristã, aproximando-os e, finalmente, fundindo-os completamente com os demais súditos do império."

O esforço deu certo apenas em parte, na análise do historiador. Ele acredita que, de fato, o projeto desmontou as estruturas e instituições que dominaram a vida dos judeus por séculos. Mas, por outro lado, o antissemitismo da sociedade russa não permitiu que eles fossem efetivamente assimilados.

Paradoxalmente, o mesmo sistema sócio-cultural judaico, que havia teoricamente se desestruturado, aparece ainda mais forte como consequência da resistência antissemita. E a manutenção dos shtetls não foi suficiente para conter os judeus nos vilarejos designados. Segundo o professor, eles migraram para os centros urbanos mais acessíveis.

Em quarenta anos, de 1860 a 1900, a população judaica de Varsóvia pulou de 41 mil para 220 mil. Neste mesmo período, o número total de judeus em Odessa saltou de 25 mil para 140 mil.

Mas isso não significava que os judeus estivessem sendo bem recebidos. Pelo contrário. Se muitas vezes eles fugiam dos shtetls por conta dos pogroms - ações deliberadas de destruição e assassinato coletivo promovidos por lideranças russas regionais -, nas cidades eram estigmatizados. Eram circunscritos a nichos e tinham a empregabilidade restrita.

Assim, no fim do século XIX, o que os judeus do leste europeu mais queriam - e passaram à ação - foi fugir. A princípio, não para a Palestina, mas para a América. Entre 1881 e 1914, 20% da população judaica da região imigrou. Entre 1,5 e 2 milhões foram para os Estados Unidos. Cerca de 350 mil imigraram para a Europa Ocidental.

E a Palestina com isso?

É que, na análise de Gelvin, o que atrapalhou a vida dos palestinos, fazendo com que um outro povo viesse ocupar o espaço que eles ocupavam há séculos, foi o fervor nacionalista do século XIX. Não que estas pessoas estivessem passando por um surto de paixão patriótica. Na verdade, elas estavam descobrindo o conceito de nação. E isso redesenhou as fronteiras do planeta.

Em linhas gerais, porque senão isso aqui não tem fim, o Iluminismo - que privilegiava a razão e a base científica em detrimento da tradição e dos dogmas religiosos - concluía que "as leis que governavam a sociedade dos homens eram tão discerníveis pela razão quanto as leis naturais que governavam o universo físico".

Esse apelo à razão se alastrou pela sociedade erudita da época, e chegou aos guetos judeus no justo instante em que eles estavam se "integrando" às comunidades em que estavam inseridos. Em decorrência da emancipação e da cidadania, as escolas judaicas deixaram de oferecer exclusivamente o conteúdo de orientação religiosa e passaram a incluir o latim e o idioma local - construindo uma ponte até então inexistente entre judeus e não-judeus.

Esta sinergia se deu exatamente na propagação do Iluminismo - circunstância que gerou o Haskalá, o Iluminismo judaico.

"O Haskalá teve seu início na Alemanha, durante o último quarto do século XVIII. A partir dali, ele se espalhou pelo Império Austríaco e pelos assentamentos", esclarece o historiador. "Os devotos do Haskalá - os maskilim - esperavam trazer ao escolado bíblico as ferramentas mais importantes utilizadas pelos seguidores não judeus do Iluminismo".

Na visão de Gelvin, isso possibilitaria que "os judeus do oeste da Europa se integrassem nas sociedades em que viviam sem o medo de perder sua identidade cultural judaica" e que, a partir da terceira década do século XIX, "a atividade principal dos maskilim em cidades como Odessa, Vilnius, Riga, Brody etc era o ensino de línguas modernas da Europa e a difusão da ciência e do progresso".

Resumindo o que o professor elaborou, os judeus eram milhões de pessoas vivendo de forma segregada - social e culturalmente -, majoritariamente no leste europeu, e sua versão do Iluminismo transformou a concepção (e a atitude) deles perante o mundo em que viviam. Estudaram línguas e os mais importantes livros escritos em cada idioma. Sobre isso, o autor destaca um texto de Salomon Maimon, um judeu polonês que escreveu sua biografia intelectual em 1793:

"Coloquei alguns livros na mala e voltei para casa em êxtase. Depois de ter estudado esses livros intensamente, meus olhos se abriram. Eu acreditava que tinha encontrado a resposta para todos os segredos da natureza. Tinha um olhar superior e orgulhoso em relação a todos os outros que ainda não sabiam daquelas coisas, ria de seus preconceitos e superstições, e me oferecia para ajudá-los a acabar com aquelas ideias e iluminá-los em sua compreensão."

Como assinala Gelvin, em uma época de manifestações nacionalistas à torto e à direita, a transformação cultural inspirada no Haskalá forneceu um terreno fértil para uma séria de ideologias - entre elas o sionismo. E um jovem jornalista de Viena, Theodor Herzl, nascido em 1860, filho de um comerciante húngaro, foi quem mais contribuiu para a organização da causa sionista.

Atuando como correspondente em Paris, reportou para os austríacos o "Caso Dreyfus". Como você sabe, Alfred Dreyfus, um judeu capitão do exército francês, foi injustamente acusado de espionar para os alemães e condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. 

Descobriu-se depois que os documentos que o incriminaram tinham sido falsificados. O célebre escritor Émile Zola afirmou em seu texto "J'Accuse" que foi o antissemitismo francês quem perversamente condenou o capitão judeu (o que levou à prisão do próprio escritor).

Zola foi solto, Dreyfus foi solto, mas o caso deixou patente para Theodor Herzl que, se nem na civilizada França os judeus estavam à salvo de perseguição e injustiça, o único caminho possível seria a obtenção de uma terra para os judeus. Passou a escrever sistematicamente sobre o assunto.

Após ter lançado o livro "O Estado judeu", de pouca repercussão, ele enviou um artigo a um jornal londrino. Sob o título "A crônica judaica", ele expressou de forma resumida suas ideias sobre o grande problema enfrentado pelos judeus, denominado no século XIX como a "Questão Judaica".

"A Questão Judaica ainda existe. Seria tolo de minha parte negar isso. Ela existe em todos os lugares onde há judeus em quantidade significativa. Nos lugares onde ela ainda não existe, os judeus a levarão quando para lá migrarem. Nós rumamos naturalmente para esses lugares onde não sofremos perseguição, mas nossa presença ali acaba por gerar nova perseguição. Isso acontece em todos os países, e continuará acontecendo mesmo naqueles mais civilizados, até que a Questão Judaica encontre uma solução política."

Herzl questionou a instituição da emancipação judaica:

"Quando as nações civilizadas acordaram para a falta de humanidade de suas legislações exclusivas, e decidiram nos emancipar, já era tarde demais. Porque nós, curiosamente, nos tornamos pessoas burguesas dentro do gueto, e só saímos de lá para competir agressivamente com as classes médias... Nós fizemos um esforço honesto para nos integrar à vida social das comunidades à nossa volta, e para preservar a fé de nossos pais. Mas isso nos foi proibido."

Aqui Herzl elaborava o conceito de nação:

"Nós somos um povo - nossos inimigos nos uniram, apesar de nossas diferenças, como sempre aconteceu na história. A angústia nos une, e depois de unidos, descobrimos nossa força. Sim, nós somos fortes o suficiente para formar um Estado, um Estado modelo".

Além da base teórica, Theodor propunha uma destinação geográfica. Citava a Palestina, mas também mencionava a Argentina e o oeste dos Estados Unidos (isso mesmo, a terra do bangue-bangue e dos caubóis). Mas reconhecia a preponderância do Oriente Médio: "A Palestina é nosso lar, e estará sempre em nosso sangue e memória".

Por conta desta convicção, e dos repetidos pogroms em solo russo, muitos judeus estavam emigrando da Europa para a Palestina, mas de uma forma que hoje chamaríamos de "sustentável" - sem impactar demasiado a região. Herzl, entretanto, lutava para encorpá-la.

Em 1897, ele convocou um congresso sionista na Basileia, Suiça, onde fundou a Organização Sionista Mundial. Seu programa dizia que o objetivo do sionismo era criar um lar na Palestina para o povo judeu, promovendo a colonização da Palestina por trabalhadores judeus na indústria e na agricultura.

Os otomanos, que eram os "donos" da Palestina, à época, criaram uma lei para barrar esta chegada em massa de judeus. Os imigrantes deveriam renunciar à sua cidadania europeia e se tornarem súditos otomanos, e poderiam escolher qualquer destino no Império Otomano - exceto a Palestina.

Virou uma lei para palestino ver. Não funcionou.

Apesar dos esforços de Herzl e da Organização Sionista, a comunidade judaica internacional estava bem dividida. Muitos eram pela fidelidade aos países de nascença e contra a partida dos judeus da Europa, enquanto outros eram especificamente contra a ida para a Palestina; alguns defendiam imigrarem para a Uganda e muitos atacavam o programa sionista como sendo de "esquerda".

Tinha lá seu fundamento. A judia Rosa de Luxemburgo, líder do Partido Comunista da Alemanha, escreveu, em 1916: "Sinto-me tão próxima das miseráveis vítimas que trabalham nos seringais de Putumayo quanto dos negros da África, que têm seus corpos explorados como brinquedos pelos europeus".

Seja como for, com ou sem controvérsia, com ou sem permissão, os judeus estavam atravessando o Mediterrâneo de volta para a terra que eles defendiam ser a origem do povo judeu. E eles fizeram isso em ondas, chamadas de aliyah ("ascender", em hebraico) - aliyot, no plural.

A primeira aliyah foi em 1882, estimulada pelos supracitados pogroms na Rússia. Dobrando a população judaica local, 25 mil judeus imigraram para a Palestina, se distribuindo entre Jafa, Haifa, Jerusalém e as margens do Mar da Galiléia. Aparentando o que hoje chamaríamos de comunidades hippies, cultivavam pequenos lotes de terra de propriedade coletiva.

Não deu muito certo - o que já era esperado, segundo Gelvin. Um célebre Rotschild, Edmond, investiu 1,5 milhão de libras nas colônias agrícolas, tentando ajudá-las a deslanchar. Por meio do sistema chamado de plantation, consolidou e expandiu a terra cultivada, otimizou a produção e multiplicou o rendimento do solo.

O resultado, sob o aspecto da produção, foi bom. Mas, ao abrir empregos para dez vezes mais árabes do que para judeus (só os assentamentos empregavam cerca de 4 mil árabes), os "colonos" judeus começaram a se deslocar para as regiões urbanas da Palestina. Não formaram maiores laços com a região, pois a maior parte da terra pertencia ao investidor Rotschild.

Isso motivou a criação de um Fundo Nacional Judaico para comprar terras na Palestina. 

Segundo o historiador, "os sionistas se propuseram a espalhar colônias por toda a Palestina. Sua missão era cultivar toda a terra possível, drenar regiões pantanosas e 'fazer o deserto florescer".

O primeiro quarto do século XX trouxe 75 mil colonos judeus para ocuparem os terrenos comprados, em duas ondas - de 1904 a 1914 e de 1918 a 1923. Foram a segunda e a terceira aliyot. Foi uma migração de forte componente ideológico, uma ode à natureza e ao trabalho comunitário.

O autor abre aspas para um proeminente sionista, não identificado: "Antes da chegada dos judeus pioneiros à Palestina, poços e nascentes secavam, muitas árvores eram cortadas, nada evitava que as dunas de areia invadissem todo o território. Só o que se espalhava era a malária. À essa região desolada chegaram os pioneiros. Eles drenaram os pântanos, construíram estradas, removeram pedras e rochas, eles semearam e colheram".

Naquele inóspito e poeirento pedaço do planeta, os judeus julgaram ter encontrado a sua versão do paraíso. Um dos imigrantes da época - e que se tornaria o primeiro-ministro inaugural de Israel, décadas depois -, Ben Gurion, escreveu:

"A diáspora significa dependência - material, política, cultural e intelectual - porque somos os estrangeiros, a minoria, desprovidos de uma terra natal, sem raízes, separados do solo, do trabalho e da indústria primária. Nossa tarefa é romper radicalmente com essa dependência e nos tornarmos senhores de nosso destino".

É quando esta romaria internacional de judeus colide e contribui para a ebulição da região. O que se tinha eram dezenas de milhares de estrangeiros obstinados e empreendedores ditando regras em uma terra que reunia centenas de milhares de árabes. Ao contrário do que muitos dos invasores apregoavam, Gelvin enfatiza: "A Palestina definitivamente não era uma terra sem um povo."

Aí, pra bagunçar de vez o coreto, veio a Primeira Guerra Mundial. O Oriente Médio se tornou uma região chave para o desenrolar do confronto. Era rota do petróleo e estava em poder dos turcos, que por sua vez eram aliados dos alemães. Com isso, os ingleses investiram na cooptação dos povos árabes, fartos dos séculos de imperialismo turco. Prometeram a eles que, se ficassem ao lado Tríplice Aliança (Inglaterra, França e União Soviética), quando a vitória chegasse a região se tornaria independente. 

A vitória chegou. Os otomanos foram expulsos e os franceses e ingleses se tornaram os mandatários da região (a Síria para os primeiros e o Egito para os últimos). O problema era a terra que existia entre os dois países. Os diversos acordos realizados ao longo da guerra eram contraditórios em relação à Palestina.

A Inglaterra estabeleceu como norte a sua Declaração Balfour. O texto era favorável aos interesses judaicos ("O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um Lar Nacional para o Povo Judeu, e empregará todos os seus esforços no sentido de facilitar a realização desse objetivo") e ambíguo em relação ao futuro da região chamada de Palestina.

Com o fim da guerra, os palestinos - que ainda não se auto-denominavam "palestinos" e sim consideravam a si mesmos parte da "Grande Síria" - só queriam uma coisa: ver os judeus fora dali. Em miúdos, que cada judeu fosse para o raio que o parta.

Mas o pior é que não parava de chegar judeu. Dezenas de milhares. Só o período entre 1924 e 1928, chamado de a quarta aliyah, trouxe 82 mil novos imigrantes. Boa parte dessa turma vinha da Polônia, intimidada pelo surgimento de uma nova legislação anti-judaica. Diferentemente dos jovens russos, ideológicos e idealistas, estes recém-chegados se assemelhavam mais a refugiados. E nem eram tão jovens. A labuta na terra não lhes interessava muito, e rumaram para as cidades, Tel Aviv e Haifa.

Como se sabe, para cada ação há uma reação. A incessante chegada de judeus inflamou a rejeição dos árabes. A intransigente rejeição dos árabes impôs aos judeus que se organizassem, em defesa. Milícias judias protegiam a minoria judaica da maioria árabe. Enquanto isso, na Europa, a situação estava cada vez pior para os judeus. Os árabes não queriam que eles ficassem. Mas eles já não tinham para onde voltar.

Como contraponto ao movimento sionista, nascia o nacionalismo palestino.

Ou seja: estamos há cem anos do momento atual e já havia um impasse, muito antes de haver Israel. Países que hoje imaginamos milenários estavam sendo criados. Não havia nem Israel, nem Palestina. Um pouco antes, na Conferência do Cairo de 1921, a Grã-Bretanha decidiu separar o território que ficava a leste do rio Jordão do mandato da Palestina, e estabeleceu uma unidade administrativa separada, chamada de "Transjordânia" (atualmente perdeu o "trans" e ficou só Jordânia).

Winston Churchill, que presidiu a conferência como secretário colonial britânico, não perdeu a deixa: "Criei a Jordânia com um rabisco de caneta numa tarde de domingo".

Frase politicamente incorreta para os pruridos atuais. Haters do século XXI, divirtam-se, derrubem as estátuas e cancelem o sujeito. Mas lembrando que este aí do chiste era o (único) cara que iria peitar Hitler e roubar do nazista a vitória na Segunda Guerra Mundial. Mas isso é outra história.

Voltando ao caldeirão do Oriente Médio, James Gelvin contextualiza o momento entre as duas guerras.

"O fato do nacionalismo palestino ter se desenvolvido depois do sionismo, e inclusive como resposta a ele, não diminui de forma alguma a legitimidade do nacionalismo palestino e nem faz com que ele tenha menor valor do que o sionismo", disseca o professor, afirmando que "todos os nacionalismos surgem em oposição a um 'outro'. O próprio sionismo nasceu da reação ao antissemitismo e aos movimentos nacionalistas excludentes da Europa."

Os confrontos se tornaram comuns. Comunidades tentavam restringir o acesso de outras comunidades aos locais sagrados. Tumultos crescentes espocaram na região, espalhados por Jerusalém, Hebrom, Jafa e Safed. Nestes conflitos morreram 133 judeus e 16 árabes. Pouco para os parâmetros atuais. Mas significativo para aqueles tempos.

Os habitantes da região se sentiam tão sírios que o mais importante jornal publicado em Jerusalém (cidade então sob domínio árabe) era o Suriya Janubiyya - a "Síria do Sul". Não à toa. Até a eclosão da Primeira Guerra Mundial esta "Síria do Sul" integrava a "Grande Síria", como mencionei acima. Como ressalta Gelvin, "elites urbanas de Damasco e Beirute investiram em grandes latifúndios em regiões como a Galileia". Uma boa estrutura, com estradas de ferro e vias para as carruagens, conectava o "norte" ao "sul".

"A Grande Síria havia se tornado uma unidade integrada social e economicamente", disserta o historiador, "se consolidando como um centro comercial com sua própria força de trabalho". Explica ainda que "camponeses e beduínos do território que hoje éa Palestina migravam regularmente, indo e vindo dos ricos campos agrícolas do distrito de Hawran, que hoje pertence à Síria".

Mal comparando, os palestinos eram para a Síria o que os paraibanos são para o Rio e os baianos para São Paulo. Uma força de trabalho oportuna direcionada ao trabalho braçal.

(Não vou entrar aqui no conceito de otomanidade explorado pelo autor, onde parte dos moradores da Palestina se considerava anteriormente súditos otomanos.)

Mas a Primeira Guerra bagunçou o coreto e inviabilizou para sempre a "Grande Síria". O posterior sistema de mandatos fez da Síria uma região de influência francesa e da região da Palestina uma região de influência inglesa. O vínculo histórico com o falido Império Otomano e com os sírios esfarelou e virou areia.

Agora o que os palestinos tinham no horizonte eram ingleses e judeus. Os primeiros dando as ordens e os últimos tomando as terras.

Árabes locais de todas as origens - não só a população original da Palestina - estavam vendo o crescimento da presença judaica com péssimos olhos. Se reuniram em associações, clubes, grupos. O resultado foi o estouro da Revolta Árabe, em 1935. Não era a "Revolta Palestina". Era a revolta do  povo árabe que morava lá, palestinos que antes se diziam sírios aliados a árabes de todo lugar. Tinham um objetivo comum: botar os judeus para fora dali.

A bem da verdade, quem fez a revolta foram os árabes sírios e egípcios mesmo. Os nascidos na Palestina podiam ser parte da soldadesca, mas não apitavam nada. Havia um forte jogo de interesses dos árabes que queriam abocanhar a região e aos quais convinha expelir os judeus. Nada dessa estorinha de aceitar ali o estabelecimento de uma Eretz Israel. Os árabes não pretendiam permitir que uma força superior fincasse os pés definitivamente na região.

Porém, se até então quem dava cobertura aos judeus eram os ingleses, de uma hora para outra tudo mudou. Literalmente. Pararam de complicar a vida dos árabes e começaram a ajudá-los. A commodity petróleo ganhara valor nas últimas duas décadas e os interesses comerciais e geopolíticos do Reino Unido migraram para o outro lado.

Não só. Com a ascensão de Hitler na Alemanha, com seu discurso antissemita, a união entre árabes e nazistas era natural. Para evitar que todo o Oriente Médio se bandeasse para o lado dos nazistas, os ingleses viraram a casaca e começaram a cercear (impedir, na verdade) o desembarque de judeus. Foi quando lançaram o que ficou conhecido como o Livro Branco.

Com o pau comendo solto na Europa em guerra, os ingleses se comprometeram com os árabes que, após o fim do conflito, nenhum judeu desembarcaria ou permaneceria na Palestina sem que fosse autorizado pelos próprios palestinos.

Como a chance de uma autorização voluntária era zero, a medida era um alívio para a população local e uma estaca no coração de um Estado Judeu que nem sequer havia nascido. 

Mas mesmo o Livro Branco não foi bem recebido pelos árabes - porque, por mais que fosse restritivo aos judeus, os árabes só aceitavam dispositivos que excluíssem os judeus de qualquer cenário legal. 

Para os judeus, que neste momento estavam enfrentando a sanha genocida de Hitler na Europa, a situação era crítica, mas tinha que ser gerenciada. Nas palavras de David Ben-Gurion, "nós devemos combater Hitler como se o Livro Branco não existisse, e combater o Livro Branco como se a guerra não existisse".

Palestinos e nazistas estavam unidos. Exemplo maior que Haji Amin al-Husayni não havia. Nascido em uma das mais influentes famílias de Jerusalém, líder do Alto Comitê Árabe e presidente do Conselho Supremo Muçulmano, Haji passou toda a Segunda Guerra Mundial na Alemanha, como hóspede e interlocutor de Hitler para os assuntos do Oriente Médio.

"A residência oportunista durante o período de guerra de Haji Amin, e as atividades propagandistas na Alemanha nazista, certamente não foram o momento de maior orgulho da história do nacionalismo palestino", admite o autor.

Seja como for, de 1939 a 1945 a Palestina entrou em banho maria. Embora a quinta aliyah tivesse trazido quase 200 mil judeus para o território, eles logo parariam de chegar, porque estavam ocupados na Alemanha e no Leste Europeu sendo espoliados e incinerados pelo regime nazista. 

Neste período, cerca de 14 mil imigravam anualmente para a Palestina (abaixo do permitido pelo Livro Branco), mas os demais judeus que tentavam escapar não tinham outro lugar para onde ir. Os países do globo terrestre se recusavam a recebê-los como refugiados - inclusive o Brasil, este poço de prosperidade e pureza étnica.

O saldo da recusa planetária foram seis milhões de judeus mortos. Homens e mulheres, jovens e idosos, crianças e recém-nascidos. Mas este Holocausto não foi suficiente para evitar a questão palestina. Muito pelo contrário, deu-lhe senso de urgência. Se metade dos judeus do mundo foram mortos, restou ainda a outra metade. 

O Reino Unido, vitorioso na guerra, falido nos cofres e ainda dono do mandato palestino, cumpriu o que se propusera no Livro Branco. Impediu dezenas de navios com refugiados judeus de desembarcarem sua carga humana na Palestina. 

Pasme: 250 mil judeus sobreviventes da guerra, boa parte oriunda dos campos de extermínio (ao fim da guerra confinados em campos de refugiados na Alemanha), cruzaram a Europa, atingiram o Mediterrâneo, embarcaram em navios para o Oriente Médio e... eram impedidos de irem ao solo. Voltavam nos mesmos navios e rumavam de novo para os mesmos campos de refugiados.

E, enquanto os judeus eram mandados de volta e rodavam como almas penadas pelos campos europeus, os ingleses queriam mesmo era repassar essa batata quente para os americanos. O Império Britânico se tornara inviável e aquele mandato na Palestina era uma aporrinhação desnecessária para um Reino Unido apequenado.

Seja batata, pepino, abacaxi ou qualquer outro produto agrícola que ocorra ao amigo leitor, o troço caiu no colo da recém-criada ONU, que veio para substituir a Liga das Nações. A Assembleia Geral comissionou então o Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina, constituído por representantes da Suécia, Holanda, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Austrália, Canadá, Índia, Irã, Guatemala, Uruguai e Peru. 

Como explana Gelvin, esse comitê emitiu dois relatórios, um majoritário e outro minoritário. O primeiro fazia "a partilha da Palestina entre as comunidades árabes e judaicas, estimulando que as duas ficassem unidas economicamente (o minoritário recomendava o estabelecimento de um Estado federal único)". Tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética apoiaram a partilha.

Os árabes e os palestinos nem aceitaram conversar. Nada de partilha. Não à judeuzada.

Diante disso, o governo britânico antecipou, ainda em 1947, que podiam incluí-lo fora da zorra toda - e que, a partir de maio de 1948, todas as suas tropas voltariam para casa. Em bom português, não ia ter mais ninguém separando árabes de judeus e a porrada iria comer.

Uma guerra civil teve início entre palestinos e judeus. E, quando enfim chegou o dia em que os ingleses foram embora, os judeus declararam a criação do Estado de Israel. Era 17 de maio de 1948. Depois de dois mil anos, o povo judeu voltava a ter uma pátria.

Abro aspas para o autor: "Os sionistas aceitaram o plano de partilha das Nações Unidas e estavam dispostos a viver em paz com seus vizinhos; os Estados Árabes rejeitaram o plano de partilha e declararam guerra ao Estado judeu; os Estados Árabes agiram como bloco único; os sionistas, em menor número e com menos armas, batalharam heroicamente contra todas as adversidades; apesar das garantias sionistas de proteção, os árabes palestinos atenderam ao chamado dos governos árabes e abriram caminho para os exércitos que avançavam".

"Os exércitos que avançavam" invadiram simultaneamente a Palestina, para expulsar os judeus, agora auto-proclamados israelenses. O conflito passou para a História como a "Guerra da Independência" (se você for judeu) ou "Nakba" (se você for palestino).

Nakba significa a "catástrofe" em árabe. Você logo vai entender porquê.

Em números gerais, eram 600 mil judeus de um lado e 1,4 milhão de palestinos do outro. A estes se somavam os exércitos dos países árabes da região. Havia uma enorme desproporção bélica e de tropas. Americanos e soviéticos não queriam se envolver. O pau que cantasse.

Para surpresa mundial, os judeus, com um terço das forças inimigas, venceram. Até hoje há uma grande polêmica sobre as razões desta vitória improvável. A mais aceita é a de que os árabes tinham conflitos inconciliáveis entre eles mesmos e também interesses "pessoais" divergentes.

Jordânia e Iraque, de um lado, e Egito, Síria e Arábia Saudita, de outro, nutriam uma forte rivalidade e pretensões simultâneas em liderar o mundo árabe. Nenhum dos Estados queria colocar seus exércitos sob o comando do rival. Com isso, agiram separadamente e capitularam. Para um inimigo menor, com menos combatentes e com menos armas. Mas suficientemente coeso e determinado.

E os que mais perderam foram os palestinos. Daí a nakba.

De uma certa forma, os árabes perderam para eles mesmos. Nem dentro de cada país havia unidade ("o governo da Síria nunca confiou totalmente nos oficiais do Exército sírio") e nem todos mantinham o mesmo grau de hostilidade contra Israel ("O rei Abdullah da Jordânia reunia-se com os líderes do Yishuv desde a criação da Transjordânia em 1921, inclusive negociando as fronteiras dos seus respectivos Estados").

Gelvin vai além, ao dizer que "Os Estados Árabes realizaram um péssimo trabalho de preparação para a guerra" e também que "a liberação da Palestina não era vista com bons olhos por governos que haviam acabado de conquistar sua independência (Líbano, Síria, Jordânia) ou que ainda conviviam com uma presença imperialista (Egito)."

Segundo um historiador israelense e britânico, Avi Shlaim, de ascendência judaica iraquiana, "a coalisão árabe foi uma das mais divididas, desorganizadas e desmanteladas de toda a história das guerras".

Os judeus venceram a Guerra da Independência. Aos vencedores, tudo. Aos perdedores, as batatas.

No caso, o exílio. Ao todo, 750 mil palestinos perderam seus lares com a guerra. Foi "o massacre e o exílio de uma sociedade inteira, acompanhada de milhares de mortes e centenas de vilarejos destruídos", reconheceu o ex-primeiro-ministro de Israel, Ehud Barak, segundo o historiador.

Ainda segundo Gelvin, "a vitória militar dos Yishuv sobre seus vizinhos do Estado árabe e o deslocamento dos palestinos que viviam dentro das fronteiras de Israel, transformaram a natureza do conflito de maneira fundamental".

Ele acrescenta que, "antes de 1948, duas comunidades de igual estatura (mas com legados diferentes) entraram em conflito direto pelo controle da Palestina", ressaltando que "em maio de 1948, uma dessas comunidades se declarou dona de um Estado soberano, enquanto a outra vivenciou um cataclismo".

"A comunidade palestina tinha se dispersado e não tinha um território para chamar de seu" (na versão do tradutor Alexandre Camacho)."Os Yishuv incorporaram quase 80% do mandato palestino no novo Estado, e Egito e Jordânia ficaram com o restante".

O restante a que se refere o autor são a Faixa de Gaza, tomada pelo Egito, e a Cisjordânia, tomada pela Jordânia, ambos no interior do Estado israelense. Perdidos ficaram os palestinos, que fugiam para lá e para cá, e que se tornaram refugiados de guerra em sua própria terra.

A partir daí, impôs-se a questão internacional dos refugiados, que repercute até os nossos dias. Metade dos palestinos se tornaram refugiados, sendo que 50% destes dentro do próprio Estado de Israel. A própria movimentação bélica dos árabes havia expulsado os palestinos ("eles não queriam que uma população civil árabe estivesse na região, já que isso limitaria a sua liberdade operacional").

Ou seja, a mesma estratégia utilizada hoje pelos israelenses para evacuar a Faixa de Gaza.

Segundo o embaixador de Israel nos Estados Unidos, Abba Eban,"a Liga Árabe emitiu pedidos que estimulavam o povo a procurar refúgios temporários em países vizinhos, e a voltar a seus lares somente depois da vitória dos Exércitos árabes, a fim de obter a sua parte nas propriedades abandonadas pelos judeus".

Embora tenha transcrito a afirmação do embaixador, Gelvin é cético quando à sua fundamentação. Mas não tem dúvidas quanto ao oportunismo dos falsos amigos da população local.

"Os governos árabes exploraram sem escrúpulos a situação dos refugiados palestinos em benefício ´próprio", sacramenta. "Depois, em momentos em que a colaboração dos refugiados já não era necessária, os governos demonstraram indiferença em relação a eles, e até chegaram a tratar com hostilidade a presença deles em seus países".

Em suma, o destino dos refugiados mais humildes foi mesmo a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e os países árabes vizinhos. Os de maiores recursos financeiros e sociais emigraram para o Golfo Pérsico, a Europa e as Américas (o autor não cita, mas há uma grande comunidade palestina no Chile, que conta inclusive com seu próprio time de futebol, o Palestino FC).

Com o fim da guerra, em paralelo à questão dos refugiados, restava a questão do reconhecimento do novo Estado. A maior parte do planeta reconheceu o direito dos judeus ao seu próprio país, ainda que lamentando a recusa árabe da partilha (por isso houve a guerra). Já a Liga Árabe impôs um boicote diplomático e econômico ao novo Estado imediatamente após a guerra. 

Israel se proclamou um Estado judaico e aprovou em 1950 a Lei do Retorno, que dizia em seu primeiro artigo que "todo judeu tem o direito de imigrar para o país". Na contabilidade do autor, em quatro anos chegaram 700 mil imigrantes, dobrando a população. Nos 15 anos seguintes chegaram outros 700 mil. Vieram também 120 mil judeus do Iraque, 165 mil do Marrocos, 31 mil da Líbia, 430 mil do Iêmen, 80 mil do Egito e 10 mil da Síria.

Enquanto Israel ganhava corpo, concomitantemente o mundo árabe ao seu redor passava por uma profunda transformação. Os golpes de estado militares dos anos 40 na Síria, Egito, Iraque, Iêmen do Norte e Líbia desaguaram nas políticas anti-imperialistas dos anos 50 e 60. Um líder, em particular, ganhou proeminência. O egípcio Gamal Abdel Nasser.

Nasser assumiu o poder no Egito determinado a por um fim aos 75 anos de presença militar britânica - e sua ação mais agressiva nesse sentido foi a nacionalização do Canal de Suez, que tinha o Reino Unido e a França como seus principais acionistas.

Lesadas, as duas potências, mais Israel, resolveram retaliar invadindo o Egito. A ofensiva gorou porque foi contrária aos interesses dos Estados Unidos, que só soube do plano após o fato consumado. A pressão norte-americana forçou os invasores à retirada dos exércitos. Quem mais ganhou com isso foi Nasser, que nacionalizou o Canal e conseguiu a expulsão dos agressores.

Nasser capitalizou o seu novo status político visando uma organização de países árabes que pudesse se contrapor à influência ocidental, criando em 1958 a República Árabe Unida. O fato é que, por conta das dissensões, a RAU nunca deu muito certo, mas foi capaz de dar muito errado.

Se fiando em uma pretensa união entre os países da região e determinado a catapultar seu prestígio, Nasser se valeu de uma informação errada sobre uma acumulação de tropas israelenses na fronteira com a Síria para escalar uma sonhada guerra de aniquilamento total e combinado contra Israel.

O desenlace do plano egípcio é tão decisivo para o que viria a ser o futuro do Oriente Médio, que não me satisfiz com a narrativa concisa de James Gelvin. Seu livro cobre um século de conflito, mas, justamente por isso, não se aprofunda no detalhamento de cada circunstância. E a guerra entre os países árabes e Israel, uma espécie de jogo do returno da Guerra da Independência - a Nakba -, passou para a história como a Guerra dos Seis Dias.

Fui procurar conteúdo que me permitisse entender como uma guerra que durou menos que uma semana teve efeitos que duraram por décadas. E que redesenhou o mapa do Oriente Médio.

A obra que, por tudo que pesquisei, indicava ser a mais completa e minuciosa sobre o evento foi o "Seis dias de guerra", por Michael B. Oren. Não me decepcionou. Falo dela no próximo post.

Edipro, 348 páginas  |  1a ed. 2a reimpressão 2023  |  Copyright 2006  |  Trad: Alexandre Camacho

Título original: "The Israel - Palestine Conflict: one hundred years of war"