"À sombra do poder", por Rodrigo de Almeida

sábado, janeiro 28, 2017 Sidney Puterman

Acima, na montagem que une capa e miolo, segue de brinde uma matéria da enxovalhada revista Veja. A quase cinquentenária publicação da editora Abril é citação recorrente no livro de Rodrigo de Almeida e, por isso, merece o destaque. O autor do livro, Secretário de Imprensa e assessor direto de Dilma Rousseff nos meses que antecederam sua queda, elege a Veja como uma das principais - senão a principal - escotilhas do cenário político. Convém destacar que, com sua prosa medida, Almeida não toca nem de raspão na retórica ginasiana de "mídia golpista", deixando-a para os animadores de torcida. Decisão sensata. Almeida é do ramo e seu texto é bem cortado. Sua obra "À sombra do poder", ainda que se apresente de outra maneira, é um extenso media clipping. Tem por carro chefe reportar, na ótica de Rodrigo, como os veículos de comunicação noticiaram os meses derradeiros da administração petista. Nos estertores, o autor foi um dos responsáveis pela delicada tarefa de divulgar a versão do governo e, na medida do possível, buscar influenciar a versão alheia, ou seja, como os fatos sobre o governo seriam noticiados. Embora a muitas léguas de compor um texto isento, o autor busca emprestar esta pátina à sua peroração, exaltando ou criticando a comunicação do palácio e revelando os objetivos pretendidos pela assessoria que chefiava. O singelo exemplar, de capa macambúzia, é livro de várias camadas. A primeira delas, prolixa, enaltece o governo de Dilma Rousseff. Outra camada é difusa, repleta de críticas piedosas. Nela se relata incontáveis vezes como a presidente, bem-intencionada, mirou no melhor e, incapaz, produziu o pior. Como uma divisão em retirada, o autor camufla no terreno minas que detonam políticos aliados (estes, se ainda não eram desafetos, decerto passaram a sê-lo). Na camada final Almeida acomoda uma nem sempre sutil auto-apologia.  Todas estas nuances vêm em meio a carradas de elogios para a "coragem pessoal", "resistência" e "dureza na queda" de Dilma Rousseff. Seguidos, via de regra, por citações desabonadoras. Descreve a sequência de equívocos, confusões e incontinência que levaram a economia à ruína, a política ao fracasso e a presidenta à deposição. Mas o prato de resistência do livro é o acompanhamento da crise pelas notícias de jornais e revistas. As matérias sobre os momentos capitais são adornadas com citações dos colunistas simpáticos ao governo, descritos como alinhados ao pensamento do Planalto e empregados como endosso à narrativa de Almeida. Sintomático é que apenas a grande mídia tem espaço no media clipping do autor. O barulhento universo chapa-branca, inchado pela verba recebida e de alarido monotemático, é praticamente ignorado, à exceção das páginas finais (na página 211 de um edição de 219 páginas), quando são citados os blogs "progressistas" (segundo Almeida, uma parte dos conselheiros recomendava "concentrar nos blogs progressistas, a batalha na grande imprensa já fora perdida, era necessário focar na disputa das redes sociais"). Como na batalha primeva do inferno bíblico, o exército do Planalto era o time do "progresso" e os opositores ao exército do Planalto eram as hordas do "atraso". Não resisti a uma auto-análise. Sócio-proprietário deste blog e com incontido gosto pelo progresso, posso inferir que sou "blogueiro progressista"? paira a dúvida, a semântica é traiçoeira, mas acho que o progresso em questão é só o deles. Mas divertido é que o autor dá suas derrapadas e a revisão, na sequência, engoliu mosca, como quando, na página 212, relata que "a presidente falou a blogs aliados e à imprensa estrangeira". Oops. No que tange às revistas, não só Veja é respeitosamente citada, como a subvencionada concorrente Carta Capital só aparece como promotora de eventos (publicação amiga do partido e que, hoje se sabe, recebia patrocínio turbinado da Odebrecht) e, ao fim, como "impaciente" com a recusa de Dilma aos pedidos de entrevista: Rodrigo reputa que a publicação "esperava ser mais bem tratada por estar em desacordo com a cobertura geral da mídia". Haja eufemismo. Há que se ressaltar que, para evitar a condenação da História - e o ridículo -, Almeida já abriu o livro dizendo que não iria adotar a expressão "golpe". Isto posto, dá uns circunlóquios e segue adiante. Boa. Mas pega pesado ao dizer que, "fora dos assuntos da Presidência, Dilma exibia charme". Epa rei. Não há como não rir quando Dilma recebe a notificação de despejo da presidência, pelas mãos do senador Vicentinho Alves, e o ministro Miguel Rosseto aplaudiu o ato aos berros de "Viva a democracia". Os outros ministros se entreolharam - estavam todos solenemente presentes - e Dilma mandou nas fuças do empolgado Rosseto: "Tu tá maluco?". O ministro do Trabalho enfiou a viola no saco. Pena, mas este flagrante é um dos poucos relatos de bastidores com que Rodrigo nos presenteia. Para minha decepção, o assunto e a matéria-prima do livro não são os bastidores, mas sim a cobertura da mídia. Como diriam os políticos, o subtítulo do livro "falta com a verdade". Nos temas escolhidos, nas entrelinhas, Almeida se valoriza, confronta posições internas - sempre de forma escamoteada - e destila seu ponto-de-vista. Fala de como a comunicação do governo combinou, diretamente com a TV Globo, da presidente falar no Jornal Nacional, o "jornal de maior audiência do país" (página 113, 1o parágrafo). Diz o assessor: "Eu e o Ministro Edinho Silva combinávamos com a Globo detalhes de links e horários precisos de entrada do programa. A margem de erro era estreitíssima." Os ministros foram todos chamados para fazerem a parede humana (recurso cênico tradicional para transparecer coesão, mais comum quando não a há) por trás da protagonista. Rodrigo revela que Dilma ansiava por entrar no ar, mas os ministros se atrasaram. Como era dia de futebol na grade da Globo, o jornal entrou mais cedo e o "vivo" não aconteceu (o discurso foi ao ar na íntegra, sem cortes, mas gravado). Segundo fica patente no livro de Almeida, o jornalismo das emissoras Globo - ainda que pouco simpático ao governo, nos meses finais, segundo o próprio - era a principal fonte de informação do Palácio e, quando as ações governamentais tinham o resultado que a presidente esperava, Rodrigo conta que Dilma corria para ver o que Merval Pereira ia dizer (página 119, 3o parágrafo). Outra figurinha carimbada na edição é Eduardo Cunha. Almeida culpa Dilma (e Mercadante) por levar Cunha ao antagonismo, revelando que ela encomendou aos ministros Gilberto Kassab e Cid Gomes a criação de um bloco no Congresso que neutralizasse o PMDB; e também que instigou o deputado petista Arlindo Chinaglia a disputar a Câmara com o "Coisa Ruim" (epíteto com que o jornalista de O Globo, Jorge Bastos Moreno, bem-vindo no Alvorada, tratava Cunha). Hoje se sabe que os ministros de Dilma, à época, haviam sido tema de mensagens trocadas entre Geddel e Cunha, como transcrição recente revelou (Cunha: "JF não resolveu?"; Geddel: "Tá resolvido. Vc tá pensando que eu sou esses ministros q vc indicou?"). O ano era 2012 e alguns dos ministros de Rousseff eram indicações de Cunha, antes dos dois, Eduardo e Dilma, romperem, como Almeida critica, resumindo: "Deu no que deu" (página 85, 2o parágrafo). O autor comenta que, um mês antes do impeachment, a Veja deu uma capa com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o título "Fera, odiado e do mal", muito bem recebida, mas tardia. Segundo ele, "a conclusão geral no Palácio do Planalto" era de que a capa de Veja deveria ter sido publicada antes. Se a Veja é a principal fonte jornalística citada no livro, Rodrigo considera que o "marketing do PT" era vitorioso no embate com a revista, mas que, ainda assim, Dilma não perdoava os ataques recebidos. Segundo o assessor de imprensa do Planalto, "em janeiro de 2016 organizamos duas grandes entrevistas coletivas e Dilma vetou, de próprio punho, a presença da jornalista da Veja" (página 39, 2o parágrafo). A presidente devolveu a lista com o nome de Veja riscado e disse: "Faz de conta que você esqueceu." A honestidade de Dilma Rousseff é enaltecida diversas vezes no livro. Ao mesmo tempo, o autor é duro com alguns inquilinos do governo. Sobre Mantega, o mais longevo Ministro da Fazenda da história da República, o reputa conhecido por "desenhar um cenário cor-de-rosa, mesmo quanto o horizonte cinzento era percebido com clareza por muita gente" (página 52, 3o parágrafo). Antecipo que assinalo páginas e parágrafos, o que é inusual neste blog, mas os sofismas que hoje revestem a pseudo-discussão política requerem que eu facilite as coisas. Ou seja: não percam tempo me contestando. Contestem o livro. Sobre o ex-porta voz da Presidência, Thomas Traumann, "bastante ouvido por Dilma", diz que a própria presidente o definiu, tempos depois: "Este só consegue enganar por pouco tempo"  (página 210, 2o parágrafo). Sobre Lula, afirmou, entre outras coisas, que, "sempre que se sentia ignorado por Dilma, tinha por padrão fazer um discurso criticando a presidente, animando muitos petistas" (página 75, 2o parágrafo). Sobre o ex-Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, Almeida considera que o próprio Ministro teria vazado, para a Isto É, a delação do ex-líder de governo, Delcídio do Amaral, por vingança contra Lula, e que Cardozo "não teria visto problema em complicar Dilma" (páginas 192 e 193, ambas citações no 2o parágrafo). O autor revela que o vazamento de Cardozo sobre Delcídio envolvia "segredos de alcova", pois o Ministro seria amante da repórter Débora Bergamasco, a responsável pela matéria. Almeida relata ainda que naquele dia todos os jornalistas o procuraram mencionando os boatos sobre o caso, que teria sido publicado no site "Diário do Centro do Mundo". Eu, que jamais soube disso, entendi melhor a serventia deste tipo de site, escrito de Londres pelo jornalista Paulo Nogueira, regiamente patrocinado pelo governo durante a administração petista. Ao não lê-lo, só agora soube do affair Cardozo-Bergamasco. Mas nem tudo é crítica. Almeida elogia os que considera parceiros do governo, como o ministro do STF indicado por Dilma, Edson Fachin, tido "como um aliado no Supremo" (página 118, 3o parágrafo), e o presidente do Senado, Renan Calheiros, aquinhoado como "arrimo legislativo do Palácio do Planalto" (página 152, 2o parágrafo). Em um dos momentos ao qual mais se dedica - o curto período Joaquim Levy -, Almeida revela como o governo se relacionava com os banqueiros, com foco em Luiz Carlos Trabuco, "homem forte de um dos maiores bancos do país" e "integrante de uma mítica dinastia". O autor revela que "tanto Lázaro Brandão quanto Trabuco se aproximaram de Dilma, que passou a nutrir respeito e admiração por este último, a quem ouvia constantemente". Não obstante sua admiração pelos banqueiros, Almeida se gaba de que, durante a campanha de 2014, atacaram Marina xingando uma das suas aliadas de "banqueira". Pior são os trechos em que Almeida transcreve os discursos da presidente. Como na página 31 ele se confessa autor de alguns dos discursos de Dilma, fiquei confuso se ele se auto-citava. Espero que não. Rodrigo de Almeida tenta sair maior do governo e do livro. Eu, que não o conhecia, posso dizer que escreve bem. Mas, diante de todas as críticas à ex-chefe aqui dissimuladas, pensaria duas vezes antes de fechar a contratação. Talvez, agora, a ex-presidenta reconsidere. Por fim, destaco o bom gosto do secretário de imprensa de Dilma, ao citar, por duas vezes, um dos meus frasistas - e personagens - prediletos, Winston Churchill. Em uma, ele comenta o relacionamento na equipe do governo: "Não tema a oposição. Tema seus colegas de ministério". Em outra, ele afirma, como sendo uma das máximas que vigoram em Brasília, sobre "fazer a coisa certa depois de se esgotarem todas as demais alternativas". Sobre esta última, temo que não tenha dado tempo.

Editora Leya, 219 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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