"Reparação", por Ian McEwan

quinta-feira, dezembro 28, 2017 Sidney Puterman

É subir uma montanha fresca e íngreme, com um lago de cinema no sopé, onde a gente se deixa cair - relaxado - e desaba. Talvez seja isso que eu tenha sentido ao ler a ficção de Ian McEwan. O autor conduz o leitor como se fosse um acrobático dançarino de tango - inebriado, você se permite levar, mas incapaz de antecipar o próximo passo, sempre refém dos meneios do escritor. O coração da estória se passa em um único dia, quando acontecem os fatos que repercutirão até a última linha da derradeira página. Em uma tarde quente de 1935, uma família do interior recebe parentes. Um dos familiares é uma menina que sonha ser escritora - e vê a irmã em uma cena constrangedora com um agregado da casa, o já não tão modesto filho da empregada. A partir daí, a habilidade com que McEwan se detém no pensamento dos personagens dá foros de protagonista a cada integrante do núcleo; desta forma, Cecília, Briony, Betty e Robbie rodopiam diante de nós com um detalhismo excessivo, mas ao qual sucumbimos, ciceroneados pela exuberância das descrições. Súbito, em meio ao bailado, o fato detonador da trama desmonta qualquer suposição prévia, ou mesmo a ausência delas. O andamento lento e idílico da narrativa é varrido para baixo do tapete e uma nuvem de Zyklon-B irrompe do livro, não nos dando chance de respirar. O rio que vinha em curso, cada vez mais caudaloso, agora despenca em catarata. Para deleite do leitor, McEwan não oferece desdobramentos óbvios às cenas tensas e o ápice da tensão vai na direção oposta ao dramalhão. Há plácidos momentos de rotina - mas que são palco de cataclismas íntimos, enquanto as situações de confronto são secas e rápidas. O cenário histórico da pequena tragédia dos Tallis são os momentos que antecedem a Segunda Guerra Mundial e, depois, via Dunquerque e Canal da Mancha, a fuga dos ingleses da França ocupada. A imersão na época é digna de faro de cachorro - se você não soubesse que o autor nasceu alguns anos depois das situações que descreve, você juraria que ele viu tudo aquilo acontecer. De cabo a rabo, é livro para se fazer uma mesura à passagem. Ressabiado - como sempre, antes de uma ficçãozinha -, eu comecei a lê-lo alguns dias antes de viajar para a Inglaterra. O livro se passa na Inglaterra, eu vou para a Inglaterra, gosto dessas redundâncias turístico-literárias. Mas engoli o livro e logo restavam apenas meia centena de páginas. Maçada, eu sabia que leria o que faltava ainda no vôo - e depois passaria duas semanas arrastando o livro pra cima e pra baixo no Reino Unido, com direito a nevascas úmidas. Resolvi deixar o livro nos trópicos. Na viagem, entretanto, volta e meia pensava nele. Assim voltei, retomei o danado, para o dito cujo, em represália, me dar um coice na página final. Sem queixas. Fez seu serviço de me desconcertar.

Companhia das Letras, 269 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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