"A conquista do Brasil, 1500 - 1600", por Thales Guaracy

quarta-feira, março 28, 2018 Sidney Puterman

Da forma que Guaracy termina seu livro, me perguntei: que estória foi essa que ele contou? A vitória dos caraíbas ou a tragédia dos tupi-guarani? Seu fim melancólico, felliniano, com uma tribo guarani que cruzou o continente para atravessar o mar e acabou tapeada por Getúlio Vargas, me deu esse travo na língua, esse estupor. Mas, apesar do poético desconcerto com que encerra, os índios são coadjuvantes de luxo, tal e qual seus irmãos do norte nos bons filmes de faroeste dos anos 50. A nossa história é branca. Seu ludibriado fechamento mostra apenas o respeito com que a destroçada nação indígena foi relatada no livro. Thales Guaracy fala sobre a Conquista do Brasil. Por nós, eu e você. Uma terra que pertencia aos outros e que foi tomada (de quem a tomou dos donos anteriores). Esta é a nossa versão, euro-lusa, a de uma terra imprestável e imensa (muita praia e pouca barraca) que acabou se tornando fonte da nossa riqueza e projeção. Porque somos nós os descendentes daqueles que vieram tomar este continente. Brasileiros eram os outros, aqueles que matamos. Nós somos os invasores. Brancos, pretos ou amarelos, somos os filhos e continuadores da cultura invasora e dominante. Hegemônica. E o que Thales Guaracy nos mostra é que esta invasão e esta tomada foi tudo, menos pacífica. Foi uma carnificina. E de ambos os lados. Nada de estorinha. O índio selvagem era, principalmente, selvagem. "Devido ao costume de oferecer mulheres aos visitantes, ou aos prisioneiros que mais tarde seriam devorados nos rituais de guerra, muitas índias pariam crianças condenadas também à morte após o nascimento. Os índios matavam o bebê como um prolongamento da vingança sobre o inimigo." Vale frisar que o índio não matava essa criança meio índia no nascimento. Muitas vezes, aos três anos de idade. Enterrada viva. Ratificando, o índio era um selvagem. Imprevisível, insubmisso, inconfiável. Brancos e índios guerrearam entre si, incluindo brancos contra brancos e índios contra índios, por décadas. Dizimaram-se mutuamente. Enquanto Portugal foi negligente quanto à terra descoberta, os portugueses que para cá vieram penaram. O turning point desta provação se deu no Rio de Janeiro, com Mem de Sá e sua prole. Em nenhum outro momento da História do Brasil o índio esteve tão bem organizado para rechaçar o português como no Rio, 60 anos após a chegada dos brancos ao continente. Já havia aprendido com o próprio branco como se organizar. Seus fortes já eram estruturados em paliçadas triplas. Suas defesas eram guarnecidas de canhões. Seu time estava enriquecido com algumas dúzias de franceses, que se tornaram índios. Mas isso foi o futuro desse passado distante. No antes, Portugal não sabia muito bem para o que serviria o Brasil. O seu quinhão atlântico de terra só não foi perdido porque bandidos portugueses como João Ramalho se estabeleceram e viraram caciques, com filhos meio índios que, ao invés de serem enterrados, viraram caçadores de outros índios e criaram uma espécie de reino, o de Piratininga (o nome indígena de Ramalho).  Mas este reino, se poderoso, açambarcava apenas a região que hoje é São Paulo e seu interior próximo. O território era grande demais. Se no Nordeste um tímido sistema econômico viria a se organizar ao redor do pau-brasil e depois da cana de açúcar, no Sul o buraco era mais embaixo. Ou um pouco acima. Na Guanabara a confederação de índios e franceses derrotou o frágil Estado português. Foi somente com a vinda de Mem de Sá (a quem o autor faz a justiça devida, alinhando-o, ao lado de Nóbrega, Anchieta e Estácio de Sá, aos grandes da nossa História) que, ao longo de uma década, os nativos, os proprietários anteriores do paraíso, foram subjugados, expulsos ou dizimados. Esta é a principal e eletrizante estória contada por Guaracy. Como um thriller de suspense, montado pela capacidade do autor de destrinchar os documentos quinhentistas, ler os incontáveis historiadores do período e contar em ritmo de ação a estratégia lusitana para a retomada do Rio de Janeiro, algumas boas dezenas de páginas sugam o leitor para dentro do livro. O Rio, esta belezura quente e abafada, tem vocação atávica para teatro de guerra. Vendo as ondas do calçadão e as pranchas de windsurf, a gente pensava que não, até os anos 80. Mas Thales Guaracy nos revela que as plácidas águas da Baía de Guanabara sempre tiveram gosto de sangue.

Editora Planeta, 254 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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